quarta-feira, dezembro 30, 2009

Quando me falaste dessa ponte...


Lembro-me dos sítios onde escrevi, quando gostei do que escrevi. Espero que me lembre deste quarto e desta cama, com esta colcha que me acompanha e que é boa. Gosto dela.
Quando me falaste nessa ponte… Quando foi mesmo? Desconfiei dela. Pois foi, lembro-me agora. Aquela não era uma manhã para acreditar nessas coisas. Havia sol, uma brisa suave tocava-te o cabelo e havia reflexos de âmbar na tua face. A claridade levava-te a franzir a testa e com os olhos semicerrados, falaste-me nessa ponte. Um misto de entusiasmo e mistério envolviam as palavras que ventilavas sussurrando. Mas aquela não era manhã para acreditar nessas coisas. Prendia-me mais facilmente na dança dos teus lábios, vendo-os articular descobrindo às vezes os dentes, do que no que descrevias. Aquela manhã não era manhã para acreditar nessas coisas. Bebeste o café num trago, parecias agitada. Nem desconfiaste que desconfiava do que me contavas. Nem desconfiaste quando aproveitei para te pegar na mão com a desculpa da reclamação da conta para mim e demorei os meus dedos na tua pele o quanto pude. Essa não era uma boa manhã para acreditar nessas coisas. A culpa não era do sol de Inverno, a culpa era dos teus lábios secos onde de vez em quando um cabelo e tu a afastá-lo com a mão. A culpa era dos teus olhos que às vezes cegavam os meus quando os encontravam. Desviava-os como quando fixamos o sol e já não aguentamos mais.
A história tinha espectros e anjos, acho que tinha criaturas e dimensões que não as nossas, tinha, parece-me, rios de vinho e árvores de ferro enferrujado, que não sabias como, mas aguentavam flores também de ferro. A história era de uma ponte para um imaginário que talvez fosse só teu. Mas aquela manhã… Sei a cor da tua camisola de gola alta, não sei dizer qual era, mas sei a cor que era. Se a visse agora, sabia. E tinhas aqueles brincos que disseste para te comprar no Natal, que estavam na montra daquela loja. Nunca tive coragem para te escolher um presente. Ou nunca arrisquei falhar nessa tarefa e desistia quando perguntava: “O que queres que te dê?” Tu, desapontada, mas compreensiva dizias por exemplo: “Estão uns brincos na montra daquela loja.” Os brincos eram bijutaria, mas eram um arco tão perfeito que parece que podia escorregar neles e segredar-te ao ouvido: “Não descrevas mais os restos de madeira da tosca ponte mágica com que sonhaste, ou que atravessaste mesmo, não quero saber como era! Diz-me antes que ainda me amas, que essa é só a tua realidade.” Como a realidade do poeta que lia poetas místicos e dizia por fim que as flores e as árvores existiam para existir, simplesmente. Aquela não era uma manhã para acreditar nessas coisas.
A história tinha aves de papel colorido que assobiavam colcheias e outras formas musicais e que esvoaçavam tipo as andorinhas. Dizias: “Tipo as andorinhas, muito ágeis e rápidas, percebes?” E eu: “Sim, percebo, mas e que cores tinham?” Não me interessavam mais cores que não o castanho dos teus olhos e o castanho do teu cabelo, ou mesmo a da blusa de gola alta que me lembro qual era mas não sei dizer agora. Só queria continuar a perder-me na dança dos teus lábios e na sinfonia do teu sussurro. E encorajava-te a descrever o que tinhas visto ao atravessar a ponte. Não me lembro bem, mas julgo que a descreveste pequena e tosca, como se feita para passar de uma só vez. Um amontoado imperfeito de paus imperfeitos de origens diversas. Era? Não sei, mas as tuas mãos tremiam um pouco. Talvez de frio, aquela esplanada aquecida pelo sol de Inverno era bafejada às vezes por aquela brisa que levavam os teus cabelos aos teus lábios e tu a tirá-los, maneando a cabeça ao mesmo tempo que a mão e… A ponte já não sei, aquela não era uma manhã para acreditar nessas coisas.
Queria que voltasses de lá e atravessasses no sentido da margem onde eu te esperava. Queria ter entrado contigo nessa realidade, fazer parte da tua história. Mesmo que com o corpo de papel colorido, a assobiar colcheias e a voar como as andorinhas. Podia ser. Assim talvez… Mas aquela manhã… Queria antes a realidade daquele rio e daquela ponte perto daquela esplanada onde a tua blusa e os teus brincos, os teus lábios com o cabelo e tu. E eu a tocar-te na mão como quem te chama para a realidade. “Ainda me amas?” era o que queria perguntar em vez de: E que cores tinham, os pássaros de papel que assobiavam colcheias e voavam como as andorinhas?”
Gosto desta colcha, espero lembrar-me dela…
FOTOS DE RICARDO CRUZ

quinta-feira, outubro 15, 2009

Cinco esboços…
Havia tanto que queria escrever e falta-me tempo. Esse mesmo, inimigo da eternidade, que se vai expirando tanto mais rapidamente quanto empenhados somos a tentar aproveitá-lo. Acontece-me às vezes chegar à noite e olhar para o dia que passou com frustração… Mais um dia em que não fiz nada, não ouvi música, não toquei, não fui a um concerto, não escrevi, não discuti nada com ninguém, não vi sequer um filme… Não fiz nada, fiz umas coisas, produzi PIB, mas não fiz nada daquelas coisas capazes de travar a cavalgada do tempo. Amanhã tenho isto e aquilo para fazer e não me posso esquecer de tal coisa assim assim… Betonar, betonar!!!
Depois desta introdução a cheirar a desculpa esfarrapada, queria então deixar aqui uns esboços do que podiam ter sido textos se eu tivesse tido tempo/paciência/disposição/não desperdiçasse tempo a ver a novela/achasse que era capaz de os escrever, no limite. Então cá vai:

1. Cuba Libre?
O “all inclueded” que a pulseira de plástico possibilita, as águas quentes e cristalinas em paisagens com palmeiras e coqueiros, os constantes cocktails e as lagostas grelhadas acontecem em muitos lugares anunciados por agências de viagens vendedoras de sonhos, férias perfeitas, evasão, divertimento, excitação e tantos outros vocábulos utilizados em panfletos apelativos… Mas ir a Cuba é mais do que isso tudo. (Como se isso tudo não fosse já muito bom…)
Apregoam-se diferenças sociais enormes em vários países, vivem-se tempos em que o consumismo ocidental desacelera timidamente, embora não me parece que vá ser essa a tendência no futuro. Em Cuba odeia-se e inveja-se o consumismo ocidental. Em Cuba adora-se e detesta-se o regime. Em Cuba não falta nada a ninguém, mas ninguém tem nada. É toda uma tentativa de equilíbrio disfarçado, pintado de casas velhas, carros antigos e fumegantes e música dedilhada.
Fui a Cuba e não vi Fidel, assim como hei-de ir Roma sem ver o papa, nem sequer questão faço... Mas em Cuba vi Buena Vista Social Club, que já é muito! Assim como já tinha visto, não o Barack, mas Count Basie, no Blue Note… (Gabarolas?! Não, orgulhoso!)
2. @belem.pt
Deve ser a primeira vez que venho aqui falar de política. Política que é como quem diz aquilo que supostamente fazem uns senhores de gravata no tão bem emadeirado meio círculo. Venho indignar-me! Então o presidente, que eu pensava que existia para por água em fervuras de cozinhados acres feitos de hábeis retóricas, vem agora ele próprio incluir especiarias fétidas num dos, já por si, menos conseguidos cozinhados políticos dos últimos tempos? Porquê?
Esta minha infeliz analogia culinária e a sua complicada ou impossível interpretação é proporcional à confusão instalada na minha pobre cabecita de contribuinte médio, atónito e incapaz de perceber o que é que se passou afinal. Mas foram escutas ou e-mails violados? Ou foram bufos metamorfoseados em moscas que, em voos rasantes à cabeça do Anibal, captaram ondas sonoras que eram informações de estado? Isto enquanto os seus mil olhos iam reflectindo o iogurte com aroma de banana que Dona Maria tomava para o lanche. Quem é que ainda nunca disse: “gostava mesmo de ser uma mosca…”?
3. Legislativas e Autárquicas
Deve ser a primeira vez que venho aqui falar de política. Espera, é a segunda!
O Sócrates não tinha oposição, o Pinto muito menos. Mais do mesmo. É perfeitamente normal… Pessoalmente, não faço comentários, pois embora só tenha dois ou três leitores, não gosto de me manifestar no que toca a política. "Então se não fazes comentários, para quê a alusão?" Perguntam os dois ou três leitores. Porque aqui mando eu e faço o que quiser! E digo mais, se querem ver política discutida de forma séria e idónea vão a um blogue que eu cá sei. Ou vão à merda, que é quase a mesma coisa…
4. Noite da relva
Não interessa como, quem, nem por quê. Queria apenas tentar fotografar um momento vivido numa das últimas noites de um sábado.
Houve licores entrelaçados em brumas que pareciam pedaços de madrugada, houve notas ao lado e notas quase no tom em cordas e palhetas vibrantes. Houve ruídos elevados a frases de jazz e grunge por quem se envolvia e se deixava fundir numa embriaguez colectiva, salpicada de realidade por tons de azul. Insuficientes porém, para impedir a levitação daquele inebriamento que se partilhava. Naquele momento sim, o tempo parou, embora a noite se tenha esfumado num instante...
5. Futsal
Aproveito só para assinalar que, pela primeira vez, o EFC se encontra no lugar cimeiro da classificação no campeonato nacional da 3ª divisão nacional, série C. (Embora ainda só tenha havido um jogo, ehehe). Sobre a taça de Portugal, não sei de nada…

domingo, outubro 11, 2009

quarta-feira, setembro 09, 2009

Spam, pah!!!

Era mais uma daquelas viagens madrugadoras com destino a Lisboa. O sol brilhava e ia-me encandeando docemente ao reflectir-se nas águas da barragem de Montargil. Adivinhava mais um dia comprido, com reuniões, decisões, chefes, subempreiteiros, donos de obra e demais intervenientes. Perdia-me em planeamentos e métodos construtivos e apenas o som da rádio me desviava a atenção de quando em vez. Acontece-me há uns anos, tantos quantos trabalho, que não são assim tantos (ainda bem), viajar de manhã e ter como companhia além dos meus devaneios, introspecções e quantidades absurdas de sono, os radialistas da antena 3, a emissora jovem nacional… As manhã da 3, programa a que me refiro mais especificamente, tem a virtude de me manter acordado muitas vezes, mas sobretudo de me fazer sorrir, rir (talvez até fazer figuras menos escorreitas aos olhos do gajo no carro da fila ao lado) e o dom incrível de diminuir os aborrecidos tempos de viagem.
Desta vez, à semelhança de umas tantas outras, peguei no telemóvel e tentei sem esperança participar no programa “pontapés na gramática”. Para surpresa minha, ao invés do esperado sinal de interrompido, o som foi o correspondente a uma chamada bem sucedida. De pronto fui atendido por uma simpática voz feminina… Encostei o carro ali depois da ponte do Rasquete e fui avisado, depois de revelar nome e origem geográfica, de que ia entrar em directo para participar no programa. Ok, não é nada de extraordinário: é só ouvir um diálogo e identificar uma imprecisão gramatical ou qualquer coisa do género. Ainda assim, não deixei de ficar algo ansioso e fui antecipando respostas cliché a perguntas do mesmo género, naturalmente inevitáveis na estética do programa… Ia encontrar na linha, aqueles que normalmente só me chegam via onda rádio espalhada pelo éter: o Luis Oliveira e a Joana Dias. Dois radialistas bem-dispostos, com estilos diferentes, ele mais cáustico, mais irónico, mas com muita piada. Ela mais naive, mais simpática, compreensiva. Ficam bem um ao outro, gosto da combinação, completam-se… Enfim, voltando ao episódio: sou anunciado, “Para jogar hoje connosco temos o Rogério Alves, que nos liga de Ponte de Sor. Bom dia Rogério.” Começou por dizer a Joana, na sua voz doce, límpida e adivinhar um sorriso no rosto. Respondi com todo o entusiasmo que a minha timidez oral permitiu: “Bom dia!” “És do lado de dá ou do lado de lá da ponte?” Esta ninguém antecipa. “Uhm, ehh, do lado de cá acho eu…” “Mas há uma ponte, ou não?” “Uhh, sim, a ponte sobre o rio Sor. “Ó Rogério, tens o nome de um famoso…” Interrompe o Luis. Esta até antecipei. “Sim, mas não tenho nada a ver com ele…” “Nem na cor?” “Muito menos na cor, sou mais para o vermelho. Verde, só o do Eléctrico de Ponte de Sor” Apontamento que me apresentou definitivamente, a puxar ao bairrismo, a assumir o benfiquismo à nação… Eheh, toma!
Depois da introdução, engraçada por sinal, chegou a hora de ouvir o diálogo… Tinha que identificar um estrangeirismo. O diálogo não foi dos mais felizes, já nem me lembro bem, mas a expressão xixi cocó foi utilizada abundantemente, o que por si só não abona a favor da composição… Mas enfim, a certa altura lá ouvi uma palavra estranha. Mas, não sei se foi pelo contexto no qual enquadrei o exageradamente adornado diálogo, percebi-a mal. “Epah, não estou a perceber… Parece-me stand, ou stunt, ou stant, não conheço este estrangeirismo.” Disse timidamente à procura de misericórdia. Entretanto ia pensando: “Porra, que na única vez em que consigo jogar vou-me espalhar ao comprido, que vergonha…” “Então ouve lá outra vez”, disse a benevolente Joana. Voltei a não perceber, “Ehh, uhh, pois… Deixa de me fazer… Stant? Não conheço, será perseguição ou assim, pelo contexto…” “Não, sabes aquelas mensagens no e-mail…” Foi então que um daqueles raios de luz reflectidos pelo espelho de água me acertou finalmente na mona e percebi. Interrompi gloriosamente: “Ahh! Spam. S-P-A-M. Spam!” tarara-ra-tarammm, ouviu-se a musiquinha a assinalar vitória. “Acabaste de ganhar o livro Rebeldes da não-me-lembro-o-nome-da autora-agora!” “Ok, obrigado. Queria só aproveitar para enviar muitos cumprimentos…” Muitos?! Quantos?” Interrompe o Luis, num tom jocoso. “Epah, pelo menos dois, para vocês. Um para o Markl, de quem sou fã. E para o pessoal todo aí. Vocês têm sido uma boa companhia nas minhas viagens pela manhã já há algum tempo…” ”Obrigada. E viajas muito?” “Sim, ando sempre fora de casa em trabalho.” E o que é que fazes?” Lá revelei a profissão e que já tinha estado no Algarve, Leiria e agora Lisboa. “Pois, és um nómada dos tempos modernos.” Concluiu o Luis acertadamente.””Pois”, respondi a suspirar. “Olha, então beijinhos, boa viagem.”Rematou a Joana. Respondi: “beijinhos e abraços…” Continuei então a jornada até mais um dia de lavoura: reuniões, decisões, chefes, subempreiteiros, donos de obra e demais intervenientes…
Foi um episódio engraçado, como giro foi também chegar à obra e o fiscal me dizer: “Epah, agora já és famoso, até falas pá rádio…” E eu tudo bem…

terça-feira, setembro 08, 2009

LISBOA, por entre as sombras e o lixo



Lisboa, Cais do Sodré:
Quando chega a noite
Com suas caras fugidias,
Olhos dilatados pelo assombro
Deixamos que a cidade nos invada,
Fantasma a embriagar-nos de luz e côr
Num sonho de mil e uma fantasias,
O desejo cruzando os neons
Em projecções plásticas...

O dealer roubou-me,
Levou-me a alma!
Rai's parta o dealer!

E se depois, ao acordarmos,
Acaso reparamos na escuridão que nos cerca,
No leve restolhar que vem do lúgubre canto,
Somos tomados por uma enorme letargia
Que nos deixa permeáveis
Ao frio da madrugada.
É então que as ratazanas,
Abandonando as trevas,
Ficam estáticas, silenciosas,
A verem-nos ir, equilibrando o passo,
Por entre as sombras e o lixo...

O dealer roubou-me,
Levou-me a alma!
Rai's parta o dealer!

Táxi!Casal Ventoso, se faz favor!


Adolfo Luxuria Canibal/ Carlos Fortes

terça-feira, setembro 01, 2009

De volta a Lisboa


As vicissitudes da vida laboral trazem-me de volta a Lisboa. Lisboa tem acontecido em mim de várias maneiras: desde a cidade enorme, visitada muito raramente em que as “guas” (gruas) e os semáforos eram o principal ponto de interesse e admiração, passando pela cidade enorme da qual o mapa mental surgia muito desfocado, na altura em que o jovem de 18 anos da província, inchado de moral, chegou para ser estudante e depressa se viu pequenino, insignificante e aprendeu a olhar por cima do ombro, a desconfiar. Mas onde cresceu também, onde se começou a projectar o homem (projectar - que adequado, mais um pouco e estou a utilizar vocábulos tipo alicerces ou fundações…). Nos anos de estudante fui aprendendo, para além das matérias, Lisboa. Fui aprendendo Lisboa. Inicialmente desconfortável e fria, suja e claustrofóbica, foi-se revelando com o passar dos anos cada vez mais maravilhosa e excitante. À medida que as descobertas aconteciam ia-me apaixonando por ela sem saber. Ainda eu verbalizava que não gostava de Lisboa e já gostava dela sem saber, contrariando-me. Depois, a vida nómada que iniciei quando abracei a profissão que me tem, levou-me de Lisboa sem que tivesse tido sequer tempo de me despedir. Abruptamente desci a A2 sem olhar para trás e só cá voltei esporadicamente, desde então.
Agora estou de volta e vejo-a de outra maneira… Por enquanto ainda é a nostalgia que me domina à passagem por certos locais onde, nos melhores tempos da existência dita normal, segundo dizem, passei, passeei, estudei, joguei, namorei, corri, bebi, vi, escutei, observei, admirei, cheirei, senti, enfim, vivi. É com um estúpido sorriso nos lábios que vou passando por onde passava distraído antes, com um objectivo, com um lugar para estar, onde alguém me esperava, onde algo acontecia, onde tinha que ir, fazendo agora o caminho a observar em vez de ver, a observar o que antes via apenas… (to be continued?)

terça-feira, julho 21, 2009

Miradouro de Luz

Outro dia passei pela Graça e por coincidência, dias depois estava a discutir este poema. Como tem estado tão presente, fui buscá-lo à gaveta:

O alinhamento descuidadamente perfeito
Dos lares que jazem na luz nacarada
Reclusa ocasional dos olhos ébrios
Do transeunte que desliza satisfeito;

O brilho adivinhado de um rio,
Um caudal de preces e promessas
Rasgado pela frieza distinta do aço,
Enquanto a figura promete um abraço;
Um castelo iluminado à força
Com a luz de glórias de outrora,
Com lampiões sujos de agora
Que reclamam o trono ao astro;
O astro encoberto sem estranheza,
Saudosa a sua calorosa frieza
Aquece, ilumina e exalta
Doutrina que à noite não faz falta.

terça-feira, junho 02, 2009

Nha terra Santo Antão...

"És de Pico Vermelho ou de Tope Agudo?" Perguntou o pai à mãe do escritor maliciosamente, na noite em que o conceberam. Explica depois na introdução à sua obra, que Pico Vermelho e Tope Agudo são nomes de localidades da ilha de Santo Antão, mas também podem ser referências a uma zona muito particular da anatomia feminina. A mãe acabou por perceber o trocadilho um pouco mais tarde nessa noite, sem que fosse preciso gastar muito crioulo.
No prólogo, a viagem no barco de São Vicente a Santo Antão é descrita com mestria, habilidade literária e sobretudo com um natural conhecimento de cada vislumbre. O meio de comunicação de Santo Antão com o mundo é o ferry boat, interface de troca das fracas produções agrícolas da ilha com os produtos que chegam de S. Vicente e do estrangeiro…. “Apesar do mau tempo a viagem estava a decorrer sem incidentes mas não estava sendo nada agradável. No seu esforço para vencer a fúria do vento e navegar em linha recta o barco enterrava constantemente a proa nas vagas tumultuosas e quando a levantava toda a sua estrutura protestava ruidosamente. Era a sua primeira viagem daquele sábado e estava completamente cheio. São Vicente retribuía a generosidade de Santo Antão enviando-lhe em troca do grogue e das verduras que recebia artigos importados do estrangeiro ou confeccionados ali mesmo na ilha.”in A Outra Face da Lei, Nicolau de Tope Vermelho.


A nossa travessia, felizmente, foi muito menos turbulenta, apresentando-se o mar de canal excepcionalmente calmo. Entre a comitiva havia ainda resquícios de uma noite mal dormida, do cansaço da viagem anterior e a presença de álcool, em alguns sistemas sanguíneos, era ainda evidente e amplificada pelo bambolear do “Armas” no azul límpido das ondas crioulas. Tanto a excitação como a ansiedade estavam a ser vencidas pelo cansaço, mas a calorosa recepção no cais e a entrada no pitoresco autocarro Toyota serviu de despertador começando a fazer-se notar os mais entusiasmados: “Uma Vergonha, vocês são uma vergonha” – era o cântico que se dedicava aos que tiveram dificuldade em acordar e quase nos fizeram perder o barco (não vou revelar identidades) …
Foi sobretudo quando a viatura iniciou a viagem que nos levaria de Porto Novo a Ponta do Sol, que começou a verdadeira descoberta, a verdadeira lição de vida que, sem que suspeitássemos, ali fomos experienciar. O primeiro deslumbramento foi a paisagem, iniciámos a subida da primeira montanha e rapidamente as máquinas fotográficas foram desembainhadas como espadas num campo de batalha, na vã tentativa de apreender a beleza dos quadros que se desenhavam à nossa frente em catadupa: de um lado era o mar lá em baixo, que banhava a montanha negra e a pequena povoação de casas toscas, inacabadas, do outro eram as escarpas e os vales que se iam tornando cada vez mais impressionantes de tão íngremes e aguçados. Seguíamos por estradas que eram serpentes de lava, como que escorrendo organicamente pelas montanhas. O pequeno autocarro parecia não ter dificuldades nas acentuadas subidas e a apertada estradinha de calçada feita pelo suor de militares portugueses há meio século, transmitia-nos um respeito cada vez maior à medida que íamos subindo e olhando lá em baixos os profundos vales. As curvas apertadas e a ravina já aqui… Enfim, já havia quem não estivesse a achar muita piada, mas a destreza do condutor era assinalável. Passados uns altos e baixos percebemos que estávamos em boas mãos e, então, sem receio, pudemos desfrutar cada quimera. Observámos as montanhas, ora em andamento, ora em paragens em locais estratégicos que se afiguravam como miradouros dignos de reconhecimento mundial por uma entidade qualquer tipo UNESCO… As sinuosas montanhas negras pareciam assombradas, tinham farpas de nuvens ao seu redor e eram pontualmente organizadas em socalcos feitos pela mão humana, de onde se erguiam timidamente alguns pés de cana-de-açúcar. Os rasgos feitos pelas ribeiras agora secas, desenham vales fundíssimos e eram interrompidas por imensos diques ao longo dos seus leitos. Chove tão pouco, que é preciso aproveitar cada gota de água! De quando em vez percebe-se o desenho das enormes crateras do que foi um vulcão ao qual se agradece a origem destas terras. A origem vulcânica da ilha transparece em cada uma das esculturais formações geológicas que se identificam. Há para todos os gostos e de todos feitios, numa entropia quase surrealista. Enfim, foi neste maravilhamento colectivo que surgiu a expressão: “Opah isto é o quê? Isto é lindo!”, repetida depois até à exaustão, como é apanágio de certos indivíduos muito engraçados da nossa comitiva… (Pessoa, Serrano e outros palhacitos que tais)



Depois de bebida a beleza paisagística, foi a vez de começar a entender a realidade da ilha e das suas gentes. A percepção da escassez e das condições extremas em que vivem, aliás, sobrevivem, os habitantes do interior da ilha, chegou quando se começaram a observar conjuntos de duas ou três casas, ou habitações, melhor dizendo, em locais praticamente inacessíveis ao comum mortal, em picos de montanha, ou em escarpas abruptas em que de facto habitavam pessoas e animais, sobretudo burros e galinhas. Têm nas imediações dois ou três socalcos roubados à força à montanha, onde cultivam escassos pés de cana-de-açúcar… A pergunta surgia-nos e alguns chegavam a ventilá-la: “Mas como é que esta gente aqui vive? Vivem do quê? Fazem o quê?” O Carlitos vinha ao meu lado no autocarro e muito espontaneamente produz o seguinte pensamento: “Epah, a gente inda diz que tá mal… Lá temos: televisões, playstations, cafés com snoockers e este pessoal aqui sem nada, man…” E acho que está tudo dito!

Após uma breve passagem por Ribeira Grande e de um serpenteio desta vez à beira mar chegámos finalmente a Ponta do Sol. A simpática vila recebeu-nos soalheira com a sua praceta central tão limpinha, o edifício da Câmara de traço colonial e a pequena igreja de costas para o mar. Logo ali, o hotel Blue Bell, que viria a ser a nossa casa nos dias seguintes. Instalámo-nos e ansiosamente nos despenhámos pela vila fora. O que encontrámos foi uma curiosa desorganização de casas por acabar e de calçadas toscas, numa tranquilidade que fazia sentido ali, no sopé da enorme e ubíqua montanha. Ah e uma loja chinesa, “Porra que até aqui!” exclamou-se… Fomos imediatamente conhecer o estádio que íamos inaugurar, as obras ainda decorriam e a azáfama era grande, mas os nossos adversários já se treinavam no relvado.

À medida que nos íamos embrenhando pela vila, percebíamos que a nossa presença não deixava ninguém indiferente. As pessoas iam olhando timidamente e as crianças rapidamente nos começaram a abordar sem receio. Não seria possível melhor recepção… Em nenhum momento houve entre nós qualquer tipo de sensação de desconforto ou insegurança. Depressa compreendemos a humildade e até por vezes ingenuidade daquelas pessoas, que nitidamente mostravam felicidade pela nossa simples presença ali. Não estávamos de todo à espera de uma coisa assim, sentíamos que significávamos mais do que o que somos…



A pluralidade, digamos assim, do nosso grupo, composto por malta do futsal, os mais velhos, três torres do futebol de 2ª divisão e os juniores também do futebol, começava a não se perceber, pois rapidamente começou a reinar um ambiente e um espírito de partilha semelhante a uma verdadeira equipa. Talvez os ares do equador tenham tido alguma influência, mas a realidade é que havia completos desconhecidos à partida, que passados dois dias se comportavam como amigos de longa data. Mesmo com a restante comitiva, desde a equipa técnica e directores, aos representantes do município e freguesias do concelho, a convivência foi sempre salutar, descontraída e até fraterna.

Até ao dia do jogo, Sábado, houve ainda tempo para mais uma incursão de autocarro pela ilha, desta vez para conhecer uns vales mais frondosos do que a generalidade da paisagem. Conhecemos também a vila de Broda, um velho amigo de Ponte de Sor e da sua Câmara Municipal, a quem ele agradece a moderna cadeira de rodas com que se faz deslocar pelas calçadas. De resto, ia-se notando pontualmente as marcas da geminação do nosso município com aquele (Ribeira Grande), em ambulâncias e carrinhas lia-se: “Geminação com o Município de Ponte de Sor”. Soubemos mais tarde pelo Pedrinho, aluno da escola primária de Ponta do Sol e que quer ser engenheiro informático, que os computadores onde dá os primeiros passos nessa matéria foram oferecidos por Ponte de Sor. Ficámos orgulhosos por saber que contribuímos para melhorar um pouco a qualidade de vida daquelas pessoas. Pelos caminhos entoavam-se alguns cânticos de “apoio” sobretudo a Django: “1,2,3,4,5,6,7 com o Django ninguém se mete” e os “pratos” da equipa soltavam as suas piadas. Ao pé de certos cromos é sempre a rir, nem são pratos, são travessas. Eheheh! Alguns ainda conseguiram ir a uma praia próxima, mas de muito difícil acesso, outros mergulharam com os nativos do pontão do pequeno porto de Ponta do Sol e jogaram futebol num improvisado campo de areia negra, para gáudio das crianças com quem partilharam chutos e fintas, cuecas e cabritos…




Quando o dia do jogo amanheceu já todos havíamos percebido que não tínhamos vindo apenas fazer turismo. A dimensão que o evento encerrava tinha-nos escapado inicialmente, mas afinal o assunto era sério, estávamos a participar numa cerimónia de estado. Para aquele país, para aquela região, para toda aquela ilha, a nossa presença ali, na inauguração de um relvado sintético, era muito importante. O jogo era publicitado nas rádios, havia rumores de até ser transmitido na televisão local e nas redondezas não se falava noutra coisa. Toda a ilha parou para assistir à cerimónia de inauguração do arrelvamento do Estádio Municipal João Serra. A selecção da ilha de Santo Antão já se treinava há duas semanas (dois treinos por dia!) para receber o Eléctrico Futebol Clube de Ponte de Sor, Portugal!
No curto trajecto do hotel até ao estádio sentíamo-nos “Cristianos Ronaldos”, tal era a agitação à nossa volta. A vila estava cheia de pessoas e junto ao estádio era um verdadeiro mar de gente. Era ocasião para dizer: “Isto é o quê, pah? Isto é lindo!”

A cerimónia começou com pompa e circunstância, desde ministros ao bispo, os presidentes das Câmaras da ilha, o nosso presidente da Câmara, todos discursaram e trocaram presentes simbólicos. Nas bancadas repletas e nas imediações das mesmas estimava-se a presença de 3000 espectadores. A tarde estava soalheira e parecia que tudo brilhava, com destaque para o relvado sintético que tanto enchia de orgulho o Eng.º Orlando, presidente da Câmara local e nosso anfitrião principal. Desenrolaram-se curtos jogos das camadas mais jovens de onde se destaca o golo de Alex, o puto que já nos tinha maravilhado no jogo de rua que tínhamos feito com ele e os seus colegas. Entre nós ia crescendo a ansiedade de iniciar a partida e um nervoso miudinho ia fazendo comichão em alguns estômagos… Não se vivem dias como aquele muitas vezes, nem tão pouco oportunidades destas surgem frequentemente. Afinal de contas era o primeiro jogo internacional do Eléctrico, as bancadas estavam repletas de gente e a transmissão televisiva sempre se verificava. Tudo isso nos fazia sentir ao mesmo tempo pequenos e orgulhosos. Equipámo-nos e demos o grito de guerra com uma emoção especial. Entrámos em campo ao ritmo do chamamento dos nossos nomes um por um aos microfones da instalação sonora do estádio: “ Do Eléctrico de Ponte de Sor de Portugal, com o nº1: Sérgio, nº2: Pachá…” e assim sucessivamente. Com a equipa da casa aconteceu o mesmo com a diferença de que a ovação vinda das bancadas foi naturalmente maior. Perfilámos e ainda antes de começar o jogo fomos cumprimentados um por um, pelo presidente da Câmara local e pelo ministro da cultura e desporto de Cabo Verde. O pontapé de saída foi dado por Grunha, uma antiga estrela do futebol da ilha com a particularidade de nunca ter envergado umas botas de futebol durante a sua carreira. Assim, foi naturalmente descalço, com o seu pé direito calejado, que aplicou um pontapé na moderna e colorida bola de futebol. Eu e o capitão adversário acompanhámo-lo até sair de campo e finalmente ia começar a partida.

Em relação ao jogo em si não me queria alongar muito… O resultado final foi 3-1, sendo que marcámos primeiro, por Serrano, o nosso único goleador internacional (agora aturem-no!) e sofremos o empate ainda na primeira parte. Na segunda parte quebramos fisicamente. Através da cobrança de uma grande penalidade, os da ilha chegaram ao 2-1 e já no final a vantagem foi dilatada para 3-1. De referir a excelente e até surpreendente qualidade de alguns jogadores adversários, mas sobretudo a enorme capacidade física de todos, onde residiu, a meu ver, a grande diferença para a nossa equipa. No Eléctrico, destaques para as exibições de Panqueca e sobretudo de Pachá. A importância do jogo para a ilha de Santo Antão e para a sua selecção foi bem notória aquando dos festejos pela conquista do troféu, tanto por parte da equipa como do público. Quanto a nós… Fizemos a festa também, claro! Juntámo-nos aos mininos e era ver-nos a saltar abraçados a eles. E eles estupefactos, a adorarem nossa a reacção. Foi mais um belo episódio! Recebemos então as medalhas das mãos dos ilustres.
Depois era ver o Baleizão a ser entrevistado para a televisão e rádios, outros a falarem para a rádio, os putos todos a pedirem-nos os equipamentos, as botas, foi a loucura… A saída do estádio, já sem equipamentos, botas, caneleiras, foi escoltada pela polícia, não por uma questão de segurança, já que não houve nenhum registo de abuso de qualquer natureza (pediam tudo, mas sempre humildemente), mas por uma questão de haver espaço para fazermos o trajecto dos balneários até ao portão, tal era a quantidade de gente que ali estava. Descemos a rua até ao hotel e íamos comentando o que tínhamos acabado de viver. Estávamos ainda a saborear aqueles momentos, enquanto havia gente, sobretudo crianças que nos seguiam. Lembro-me de ver o Carlitos com dez miúdos à volta: “Carlitos, Carlitos, dá-me a camisola…” Podia ser a camisola, um aperto de mão ou um abraço, mas o que eles queriam mesmo era estarem ali junto de nós. E nós sem sermos as estrelas que eles mereciam que fossemos, mas a curtirmos cada segundo.



Depois do jogo jantou-se no hotel com a equipa adversária. Uma banda animava a malta e iam-se entornando as primeiras cervejas ouvindo mornas e funánás. Antes de começar houve ainda lugar a discursos: os presidentes da Câmara (os de lá e o de cá), o presidente o Eléctrico e os capitães de equipa. Aí é que a porca torceu o rabo… O bom do Roger a tremer enquanto tentava pôr em palavras um pouquinho do que a equipa tinha sentido naqueles dias. O objectivo não foi cumprido, o discurso saiu fraquinho. O que eu queria dizer era que tínhamos experienciado uma verdadeira lição de vida e que estávamos imensamente orgulhosos de ter representado a nossa terra e o nosso país, depois agradecia a oportunidade e dizia obrigado, ouvia as palmas e sentava-me, era só isso, tinha sido tão fácil... Mais tarde, depois do repasto foi diferente, cheios de confiança monopolizámos o palco e começamos a cantar umas modas, ora portuguesas (“Os meninos à volta da fogueira”), ora Cabo-verdianas (“Sodade, sodade, es nha terra Ponta do Sol…”), sempre bem acompanhados pela banda. Neste capítulo tenho que destacar a afinada participação de Mário Leitão, o surpreendente cantor galveense que já não largava o microfone. Estivemos bem! Saíram os jogadores adversários, entraram as miúdas do staff do estádio, para ensinar a malta a dançar as mornas. Alguns desenrascavam-se bem, outros nem tanto… Mais tarde na discoteca toda a gente deu um pezinho de dança e foram bebidos litros de ponche - grogue com mel e limão, acho eu - só sei que aquilo colava… Havia quem contabilizasse a quantidade de ponches, enquanto outros estavam interessados em dançar com o maior número de miúdas possível, enfim, foi uma folia bem engraçada! “Óh Nariná, ohhh Nariná…”“Ó puto, ó puto, depois tens que me arranjar essa foto….” Repetia o Pessoa para o Luis Carlos, enquanto este se assumia como o fotógrafo da noite.

O dia da partida chegou e foi com um brilhozinho nos olhos que, no nosso autocarro Toyota, fomos vendo Ponta do Sol pelo vidro de trás a ficar pequenina, ainda mais pequenina. Isto, claro, depois de termos tido uns quantos ”fãs” à porta do hotel a gritar “Eléctrico, Eléctrico”. Eram os nossos putos… No caminho até Porto Novo houve ainda lugar uma efeméride bem divertida. Passou na rádio a musica do Carlitos. Foi o delírio… “Alô, sou Carlitos, vim hoje da Roménia…” Os juniores assistiam mais uma vez espantados e por certo pensavam: “Quanto mais velhos piores…” E tinham razão!

O “Armas” já nos esperava no cais. O mar parecia mais agitado do que na vinda, com farrapos brancos levantados pelo vento, parecia que protestava a nossa partida da ilha. O sol reflectia-se no branco do barco e uma envolvência âmbar emprestava aquele momento algo de melancólico. O sentimento tão português, cantado em crioulo pela diva de São Nicolau, já parecia tomar conta de alguns olhares que se iam deixando perder num último vislumbre das montanhas.


Finalmente foi o Mindelo outra vez, menos puro, menos inocente, pagando a factura de já ser um centro urbano. E a viagem de volta, sem dormir, a dormir por aí, espalhados em cadeiras e pavimentos de aeroportos, a dormir no avião também. Lisboa já lá em baixo, cheia de sol a abraçar-nos de volta. Vínhamos diferentes, tínhamos aprendido, tínhamos crescido e por certo não iríamos ver a nossa realidade da mesma forma…



sexta-feira, maio 22, 2009

De Cabo Verde...

"És de Pico Vermelho ou de Tope Agudo?" Perguntou o pai à mãe do escritor maliciosamente, na noite em que o conceberam. Explica depois na introdução à sua obra, que Pico Vermelho e Tope Agudo são nomes de localidades da ilha de Santo Antão, mas também podem ser referências a uma zona muito particular da anatomia feminina. A mãe acabou por perceber o trocadilho um pouco mais tarde nessa noite, sem que fosse preciso gastar muito crioulo.

terça-feira, abril 28, 2009

Pedreira da Fazenda, o poema possível


Secular sítio
Que se transforma
Num frenesim de calmaria
Em intervalos de paciência
Se te pudesse aprender
E soubesse falar contigo
Perguntava-te o que já viste
Quantos aqui te alcançaram?
Quantos não te entenderam?
Respeitaram, amaram
Desprezaram, não repararam
Quantos aqui já viram
A tua nudez, a tua inocência?
Quantos já ousaram
Beber-te a sapiência?

Lugar antigo
Que se transforma
Dos elementos abrigo
Nos elementos perigo
Húmido, frio, sombrio
Onde deslizas anelídeo
Onde o procuras ó melro
O teu bico amarelo
Será o seu jazigo
Aqui a metamorfose
É um rio de água nova
E as pedras postas por ela
É a larva que nada, tosca
E o peixe que não a deixa ser mosca
É o girino sem saber quem é
Rã? Sapo? Se houver fé

Mas adivinha-se o feixe de sol
A reflectir partículas de soslaio
Desenham milagrosamente o raio
Trespassando ramos torcidos
Pela vontade de beijar o rio
Sazonalmente despidos
De folhas que flutuam depois
À deriva, na velocidade
Denunciando a intenção
Ainda só sonho, ilusão
Pois na nervosa tranquilidade
Com ligeireza ou dificuldade
Há um objectivo a findar
Há enfim que chegar ao mar

segunda-feira, abril 20, 2009

Pedreira da Fazenda

Pedreira da Fazenda IV - Fotografia de Ricardo Cruz.



Desta vez decidi fazer as coisas na ordem inversa. Ou seja, primeiro vou postar a fotografia e só depois, quando tiver coragem de o fazer, virá o texto.
Talvez desta forma dê para entender melhor o desafio que tenho entre mãos.
Aproveito ainda para solicitar que experimentem também. Seria interessante. Eu sei que não há muita gente a seguir este blog, mas os dois ou três que aqui vêm de vez em quando podiam tentar. Que dizem? Em verso, em prosa, uma única frase, uma única palavra, qualquer coisa...
Obrigado.

terça-feira, abril 14, 2009

E assim foi:

Quando a ideia surgiu, numa conversa de balcão, entre incontornáveis imperiais e tremoços ubíquos, fiquei entusiasmado e pareceu-me um excelente desafio. Aceitei de imediato, embora alguma inquietude me tenha assolado ao dar-me conta da responsabilidade tremenda que acabara de assumir.
Assim, quando o Ricardo me enviou dois trabalhos dele para eu tentar escrever qualquer coisa que lhes emprestasse alguma coisa, já sabia o que aí vinha. E o que aí vinha era arte. “Será que vou ter arte, para a arte que aí vem?” Pensei.
Fiz o download. Abri a fotografia. Já a conhecia e sempre gostei dela… Mas agora tinha que a conhecer ainda melhor, tinha que entrar por ela adentro e entendê-la à minha maneira.
Olhei para ela, observei-a bem, contemplei-a, admirei-a mesmo… Ia tentando adivinhar onde era, ia tentando perceber em que ambiente se inseria. Mais rural, parecia-me. O degrau, o chão que parecia de terra batida… Enfim, tirava elações directamente da noite, que, já agora, me parecia quente. Devia ser Verão. Abri a folha de texto ainda sem ter nada pensado. Estava perante a mesma, a tentava decidir como e o que escrever…
Enfim, não foi nada fácil, mas nem só de coisas fáceis se faz a existência e não é por elas que se reza.
De repente identifiquei três personagens principais: a porta, a luz e a noite… A partir daí decidi assumir o papel de observador dirigindo-me directamente à luz, que assumiu então relevo na estória (ou história?) e se tornou minha interlocutora. Depois a porta como sua adversária, mais tarde sua cúmplice e a noite que as envolvia. Assim nasceu o texto abaixo. Achei interessante explicá-lo, contextualizá-lo… Só naquela.
NOTA: Enquanto o escrevia estava a curtir, assim que acabei achei que tinha ficado mais ou menos e quando o reli achei mesmo fraquinho, muito aquém… Depois confortei-me: “Ok. É normal. Se uma imagem vale mais de mil palavras e eu só escrevi 316…”

sábado, março 28, 2009

Light from the inside




Já tinhas pedido para sair… Querias emprestar-te ao breu exterior, que conseguias apenas desafiar pela estreita fresta por baixo dela. Excitava-te a possibilidade de te poderes espalhar pela noite quente que adivinhavas lá fora. Imaginavas poder vencê-la também, já que o interior inundava-lo facilmente, conquistando-o sem esforço. Ela sabia que te esperava o infinito, mas apreciava a tua ambição. A sua experiência dizia-lhe que a tua pretensão era inatingível, mas interessava-se pela tua altivez irreflectida e estava tentada a deixar-te fracassar para seu gáudio. Tu insististe uma última vez e ela não pôde deixar de aceder ao teu sôfrego pedido. Porém, preparou-te uma surpresa, uma pequena partida para te humilhar e ocupar depois a posição de mestre, ensinando-te a tua pequenez. Abriu-se, mas deixou ficar o artefacto que a ajuda a deixar de fora pequenos visitantes indesejados. Tu, à tua velocidade que é a maior de todas, não hesitaste e precipitaste-te por entre as fitas bamboleantes… Despenhaste-te na escuridão e estilhaçaste-te em estrias no chão. Tu querias que ela se abrisse ainda mais, mas ela já te receava porque não te esperava tão esguia, tão fluida, tão escorregadia… E observava-te admirada, enquanto seguias paralela às linhas de sombra, pelas quais o anti-insecto, seu amigo, se auto-responsabilizava reclamando para si, embora discretamente, a autoria da textura que tu desenhavas sem querer. Percebias imediatamente que a tua ambição era infundamentada, mas o maravilhamento que experienciavas impedia-te de te sentires desiludida. O oculto, o misterioso, a noite que era mesmo quente… Agradecias-lhe e ela sorria também feliz, percebendo que afinal, apesar do atrevimento, merecias esta liberdade, pelo menos por uns momentos… No fundo, também ela apreciava mostrar-se à noite e tu permitias-lhe essa exposição. Sentia-se leviana por se expor, mas a inquietude que se apoderara dela, deixava-a excitada e permanecia assim, entreaberta, permitindo-te a viagem.
E a noite, daltónica, aguardava este momento… O instante em que ela se abriu para tu passares, foi o mesmo em que a noite assassinou a curiosidade que a matava e espreitou lá para dentro. Sobre o que viu não vai rezar esta história, mas tu sabes o que lhe mostraste enquanto te distraías a explorá-la também.
E foi neste acordo harmonioso, num silêncio feito de grilos e rãs, de corujas e uivos distantes, que se terá ouvido o clic que roubou a alma ao momento eternizando-o, podendo agora eu, abusador, pintá-lo nestas linhas.



Fotografia de Ricardo Cruz.

sexta-feira, março 20, 2009

Vivo com ele...


Já não sou eu que vos escrevo. Este que vos fala não é agora o mesmo. Pode voltar a ser, vai voltar a ser, mas não o é. E porquê? Porque reparte a existência, que se quer una, singular, própria, com um herpes colossal. E podem pensar que exagero ao pôr as coisas nestes moldes, mas deixem-me argumentar…
Ter uma crosta entre o lábio superior e a narina direita, visível da lua a olho nu, por si só já não é fácil. Eu, que tenho estas manifestações fúngicas amiúde, até já devia estar habituado a conviver com elas. Mas a verdade é que de cada vez que uma ligeira comichão, um pequeno ardor se inicia na zona abaixo do nariz e por cima do lábio superior, ou seja, se eu tivesse nascido uns anos mais cedo e seguido uma carreira futebolística nos anos 80, na zona do bigode. Cada vez que aí sinto uma pequena fogueira, já sei o que aí vem. E fico imediatamente afectado, o mundo desaba (novamente) sobre mim. “Porquê? Porque é que apareces agora? Assim, sem avisar?!” São algumas das perguntas que faço ao espelho, enquanto me demoro a observar com admiração a pequena organização de fungos, consumindo parte da minha epiderme, transformando-a numa pasta amarela e depois numa crosta, variando entre tons esverdeados até tradicional castanho avermelhado. Depois solta-se, destapando finalmente a nova pele que cresceu entretanto, por debaixo. A totalidade do processo demora cerca de duas semanas.
Se ao menos houvesse uma causa conhecida para o despoletar do fenómeno. Se eu pudesse evitar de alguma forma… Por exemplo, se a causa fosse a ingestão de um marisco bivalve originário da Polinésia Francesa, eu sabia que se o ingerisse, por melhor que fosse o seu sabor e o prazer que teria, conviveria duas semanas com a manifestação de um bicho que vive debaixo da minha pele há uns tempos. Podia então ponderar: “será que vale a pena? Hmm, para mim são uns percebes, fachavor.” Mas não, não há razão, não há causa aparente, o ser não escolhe datas (quer dizer, às vezes parece que escolhe: as mais impróprias), não tem preferências por nenhuma estação do ano em particular, enfim, aparece, simplesmente, sem dar cavaco. E eu que o ature, irremediavelmente!
Não é fácil… Primeiro vem a negação: “ Não, se calhar é só uma borbulha…” Quando no fundo já sei que não é. Depois a aceitação: “Foda-se, um herpes…” Segue-se a tentativa desesperada de iniciar uma acção rápida que impeça a aparição. “Gelo, preciso de gelo para queimar já o cabrão todo!” A intervenção falha quando se constata que depois de derretido o quinto cubo de gelo consecutivo, ele continua vivo e até parece gostar do desafio. A seguir vêm as tentativas de consolo: “Eu costumo curar isto rápido. É na boa, deixo crescer a barba e isto nem se nota.” Ah pois não, nota-se lá agora!!!
O que mais custa não é o ardor, não é a comichão ou o desconforto físico em si. O que é penoso é a convivência com ele. Parece não haver forma de esquecer que ele ali está. Consigo mesmo vê-lo, se fizer assim ao lábio e olhar para baixo. Olha, lá está ele, ali ao lado da ponta do nariz. Está desfocado, mas é ele, reconheço-o. Já o conheço desde que nasceu, acompanhei toda a sua evolução ansiosamente. Vi-o no auge da carreira e agora que está decadente fico cada vez mais feliz, sabendo o seu fim se aproxima vertiginosamente. A sua existência, apesar de curta, foi intensa e vigorosa. O seu fim será súbito, quando o último pedaço de crosta cair…
Não deve ter passado um minuto, nestas quase duas semanas em que fomos dois, que eu não me tenha lembrado que o carrego na face. Não deve ter existido um minuto que, por mais que eu evitasse, não lhe tivesse tocado com o indicador, na esperança de que a crosta já estivesse madura o suficiente para, acelerando o processo, eu a arrancasse cuidadosamente, sem prejuízo para a frágil epiderme que entretanto se regenerou…
E depois é a sociedade… O mundo não compreende, o mundo ainda não tolera certas diferenças. Quantas pessoas passam por mim e apontam, enojadas, às vezes mesmo de forma jocosa… (Agora sim, exagerei…) Não, a sério, o pessoal pergunta: “ O que é isso, pah? O que é que aí tens?”, apontando para o próprio bigode, franzindo a testa, engelhando o nariz, com uma expressão de solidariedade, mas que não deixa escapar um laivo de alívio, por não serem eles as vítimas de tal enfermidade. Não são raras as vezes que dou por mim, de forma inconsciente, a tapar com uma das mãos a zona afectada, enquanto dialogo com alguém, envergonhado, afectado, desconfortável, enfim, sem ser eu.
Bom, depois de tudo isto, espero que me tenham compreendido e percebam a hipérbole que encerra toda esta exposição. Um beijo… Epah, um beijo não, que estou com herpes! Um abraço (mas não muito apertado, ok?!).

segunda-feira, março 16, 2009

O jantar U!

O jantar do dia U, que decorreu no passado Sábado já toda a gente sabe onde, foi um sucesso!
Registou-se a maior afluência de sempre. Foram 15 indivíduos a sentir a chama U, numa noite memorável em que se comeu bem (pelo menos o Lelo comeu de certeza, a julgar pelas fotos que se seguem), em que reinou a alegria e o companheirismo, em que houve cânticos (é perguntar ao Zé do Caçador) em que foram visitadas memórias partilhadas e lugares míticos da nossa terra (João dos Calos, por exemplo).
As imagens valem mais que mil palavras, é o que consta, portanto seguem algumas:



O pessoal todo...


Aqui há amor (ou então confundiu o Bicas com uma lagosta)



Agora sem confusão (sim, aquilo era o prato dele...)


O mano, o gordo, eu e o meu herpes...


Os manos mono! Ele tentou dar luta, mas ainda tem que comer muita lagosta... Parabéns David, se não é o recorde do Guiness, é pelo menos o recorde do Relvão!

O brinde (um de muitos)... Sim, os donos da casa também tiveram que beber.

Equipa


A equipa a esparvoar...


Pelas calçadas das avenidas...




A escolha musical possível na cervejaria Sto António, vulgo João dos Calos.

À porta do Zé do Caçador... A gente bem queria mais uma, mas a vizinha de cima tem um míudo pequeno. Mas foram momentos bonitos, os que se viveram lá dentro (o Zé estava em êxtase).

Bem, e foi assim... Não há muito a acrescentar, apenas desejar que a tradição se mantenha e vá crescendo com o passar dos anos. Que sejemos cada vez mais e que continuemos com o espírito U bem vivo (what ever that means...)


Sou dos Ultras, sou descontrolado, ts ts ts... rárárárárá!