terça-feira, junho 02, 2009

Nha terra Santo Antão...

"És de Pico Vermelho ou de Tope Agudo?" Perguntou o pai à mãe do escritor maliciosamente, na noite em que o conceberam. Explica depois na introdução à sua obra, que Pico Vermelho e Tope Agudo são nomes de localidades da ilha de Santo Antão, mas também podem ser referências a uma zona muito particular da anatomia feminina. A mãe acabou por perceber o trocadilho um pouco mais tarde nessa noite, sem que fosse preciso gastar muito crioulo.
No prólogo, a viagem no barco de São Vicente a Santo Antão é descrita com mestria, habilidade literária e sobretudo com um natural conhecimento de cada vislumbre. O meio de comunicação de Santo Antão com o mundo é o ferry boat, interface de troca das fracas produções agrícolas da ilha com os produtos que chegam de S. Vicente e do estrangeiro…. “Apesar do mau tempo a viagem estava a decorrer sem incidentes mas não estava sendo nada agradável. No seu esforço para vencer a fúria do vento e navegar em linha recta o barco enterrava constantemente a proa nas vagas tumultuosas e quando a levantava toda a sua estrutura protestava ruidosamente. Era a sua primeira viagem daquele sábado e estava completamente cheio. São Vicente retribuía a generosidade de Santo Antão enviando-lhe em troca do grogue e das verduras que recebia artigos importados do estrangeiro ou confeccionados ali mesmo na ilha.”in A Outra Face da Lei, Nicolau de Tope Vermelho.


A nossa travessia, felizmente, foi muito menos turbulenta, apresentando-se o mar de canal excepcionalmente calmo. Entre a comitiva havia ainda resquícios de uma noite mal dormida, do cansaço da viagem anterior e a presença de álcool, em alguns sistemas sanguíneos, era ainda evidente e amplificada pelo bambolear do “Armas” no azul límpido das ondas crioulas. Tanto a excitação como a ansiedade estavam a ser vencidas pelo cansaço, mas a calorosa recepção no cais e a entrada no pitoresco autocarro Toyota serviu de despertador começando a fazer-se notar os mais entusiasmados: “Uma Vergonha, vocês são uma vergonha” – era o cântico que se dedicava aos que tiveram dificuldade em acordar e quase nos fizeram perder o barco (não vou revelar identidades) …
Foi sobretudo quando a viatura iniciou a viagem que nos levaria de Porto Novo a Ponta do Sol, que começou a verdadeira descoberta, a verdadeira lição de vida que, sem que suspeitássemos, ali fomos experienciar. O primeiro deslumbramento foi a paisagem, iniciámos a subida da primeira montanha e rapidamente as máquinas fotográficas foram desembainhadas como espadas num campo de batalha, na vã tentativa de apreender a beleza dos quadros que se desenhavam à nossa frente em catadupa: de um lado era o mar lá em baixo, que banhava a montanha negra e a pequena povoação de casas toscas, inacabadas, do outro eram as escarpas e os vales que se iam tornando cada vez mais impressionantes de tão íngremes e aguçados. Seguíamos por estradas que eram serpentes de lava, como que escorrendo organicamente pelas montanhas. O pequeno autocarro parecia não ter dificuldades nas acentuadas subidas e a apertada estradinha de calçada feita pelo suor de militares portugueses há meio século, transmitia-nos um respeito cada vez maior à medida que íamos subindo e olhando lá em baixos os profundos vales. As curvas apertadas e a ravina já aqui… Enfim, já havia quem não estivesse a achar muita piada, mas a destreza do condutor era assinalável. Passados uns altos e baixos percebemos que estávamos em boas mãos e, então, sem receio, pudemos desfrutar cada quimera. Observámos as montanhas, ora em andamento, ora em paragens em locais estratégicos que se afiguravam como miradouros dignos de reconhecimento mundial por uma entidade qualquer tipo UNESCO… As sinuosas montanhas negras pareciam assombradas, tinham farpas de nuvens ao seu redor e eram pontualmente organizadas em socalcos feitos pela mão humana, de onde se erguiam timidamente alguns pés de cana-de-açúcar. Os rasgos feitos pelas ribeiras agora secas, desenham vales fundíssimos e eram interrompidas por imensos diques ao longo dos seus leitos. Chove tão pouco, que é preciso aproveitar cada gota de água! De quando em vez percebe-se o desenho das enormes crateras do que foi um vulcão ao qual se agradece a origem destas terras. A origem vulcânica da ilha transparece em cada uma das esculturais formações geológicas que se identificam. Há para todos os gostos e de todos feitios, numa entropia quase surrealista. Enfim, foi neste maravilhamento colectivo que surgiu a expressão: “Opah isto é o quê? Isto é lindo!”, repetida depois até à exaustão, como é apanágio de certos indivíduos muito engraçados da nossa comitiva… (Pessoa, Serrano e outros palhacitos que tais)



Depois de bebida a beleza paisagística, foi a vez de começar a entender a realidade da ilha e das suas gentes. A percepção da escassez e das condições extremas em que vivem, aliás, sobrevivem, os habitantes do interior da ilha, chegou quando se começaram a observar conjuntos de duas ou três casas, ou habitações, melhor dizendo, em locais praticamente inacessíveis ao comum mortal, em picos de montanha, ou em escarpas abruptas em que de facto habitavam pessoas e animais, sobretudo burros e galinhas. Têm nas imediações dois ou três socalcos roubados à força à montanha, onde cultivam escassos pés de cana-de-açúcar… A pergunta surgia-nos e alguns chegavam a ventilá-la: “Mas como é que esta gente aqui vive? Vivem do quê? Fazem o quê?” O Carlitos vinha ao meu lado no autocarro e muito espontaneamente produz o seguinte pensamento: “Epah, a gente inda diz que tá mal… Lá temos: televisões, playstations, cafés com snoockers e este pessoal aqui sem nada, man…” E acho que está tudo dito!

Após uma breve passagem por Ribeira Grande e de um serpenteio desta vez à beira mar chegámos finalmente a Ponta do Sol. A simpática vila recebeu-nos soalheira com a sua praceta central tão limpinha, o edifício da Câmara de traço colonial e a pequena igreja de costas para o mar. Logo ali, o hotel Blue Bell, que viria a ser a nossa casa nos dias seguintes. Instalámo-nos e ansiosamente nos despenhámos pela vila fora. O que encontrámos foi uma curiosa desorganização de casas por acabar e de calçadas toscas, numa tranquilidade que fazia sentido ali, no sopé da enorme e ubíqua montanha. Ah e uma loja chinesa, “Porra que até aqui!” exclamou-se… Fomos imediatamente conhecer o estádio que íamos inaugurar, as obras ainda decorriam e a azáfama era grande, mas os nossos adversários já se treinavam no relvado.

À medida que nos íamos embrenhando pela vila, percebíamos que a nossa presença não deixava ninguém indiferente. As pessoas iam olhando timidamente e as crianças rapidamente nos começaram a abordar sem receio. Não seria possível melhor recepção… Em nenhum momento houve entre nós qualquer tipo de sensação de desconforto ou insegurança. Depressa compreendemos a humildade e até por vezes ingenuidade daquelas pessoas, que nitidamente mostravam felicidade pela nossa simples presença ali. Não estávamos de todo à espera de uma coisa assim, sentíamos que significávamos mais do que o que somos…



A pluralidade, digamos assim, do nosso grupo, composto por malta do futsal, os mais velhos, três torres do futebol de 2ª divisão e os juniores também do futebol, começava a não se perceber, pois rapidamente começou a reinar um ambiente e um espírito de partilha semelhante a uma verdadeira equipa. Talvez os ares do equador tenham tido alguma influência, mas a realidade é que havia completos desconhecidos à partida, que passados dois dias se comportavam como amigos de longa data. Mesmo com a restante comitiva, desde a equipa técnica e directores, aos representantes do município e freguesias do concelho, a convivência foi sempre salutar, descontraída e até fraterna.

Até ao dia do jogo, Sábado, houve ainda tempo para mais uma incursão de autocarro pela ilha, desta vez para conhecer uns vales mais frondosos do que a generalidade da paisagem. Conhecemos também a vila de Broda, um velho amigo de Ponte de Sor e da sua Câmara Municipal, a quem ele agradece a moderna cadeira de rodas com que se faz deslocar pelas calçadas. De resto, ia-se notando pontualmente as marcas da geminação do nosso município com aquele (Ribeira Grande), em ambulâncias e carrinhas lia-se: “Geminação com o Município de Ponte de Sor”. Soubemos mais tarde pelo Pedrinho, aluno da escola primária de Ponta do Sol e que quer ser engenheiro informático, que os computadores onde dá os primeiros passos nessa matéria foram oferecidos por Ponte de Sor. Ficámos orgulhosos por saber que contribuímos para melhorar um pouco a qualidade de vida daquelas pessoas. Pelos caminhos entoavam-se alguns cânticos de “apoio” sobretudo a Django: “1,2,3,4,5,6,7 com o Django ninguém se mete” e os “pratos” da equipa soltavam as suas piadas. Ao pé de certos cromos é sempre a rir, nem são pratos, são travessas. Eheheh! Alguns ainda conseguiram ir a uma praia próxima, mas de muito difícil acesso, outros mergulharam com os nativos do pontão do pequeno porto de Ponta do Sol e jogaram futebol num improvisado campo de areia negra, para gáudio das crianças com quem partilharam chutos e fintas, cuecas e cabritos…




Quando o dia do jogo amanheceu já todos havíamos percebido que não tínhamos vindo apenas fazer turismo. A dimensão que o evento encerrava tinha-nos escapado inicialmente, mas afinal o assunto era sério, estávamos a participar numa cerimónia de estado. Para aquele país, para aquela região, para toda aquela ilha, a nossa presença ali, na inauguração de um relvado sintético, era muito importante. O jogo era publicitado nas rádios, havia rumores de até ser transmitido na televisão local e nas redondezas não se falava noutra coisa. Toda a ilha parou para assistir à cerimónia de inauguração do arrelvamento do Estádio Municipal João Serra. A selecção da ilha de Santo Antão já se treinava há duas semanas (dois treinos por dia!) para receber o Eléctrico Futebol Clube de Ponte de Sor, Portugal!
No curto trajecto do hotel até ao estádio sentíamo-nos “Cristianos Ronaldos”, tal era a agitação à nossa volta. A vila estava cheia de pessoas e junto ao estádio era um verdadeiro mar de gente. Era ocasião para dizer: “Isto é o quê, pah? Isto é lindo!”

A cerimónia começou com pompa e circunstância, desde ministros ao bispo, os presidentes das Câmaras da ilha, o nosso presidente da Câmara, todos discursaram e trocaram presentes simbólicos. Nas bancadas repletas e nas imediações das mesmas estimava-se a presença de 3000 espectadores. A tarde estava soalheira e parecia que tudo brilhava, com destaque para o relvado sintético que tanto enchia de orgulho o Eng.º Orlando, presidente da Câmara local e nosso anfitrião principal. Desenrolaram-se curtos jogos das camadas mais jovens de onde se destaca o golo de Alex, o puto que já nos tinha maravilhado no jogo de rua que tínhamos feito com ele e os seus colegas. Entre nós ia crescendo a ansiedade de iniciar a partida e um nervoso miudinho ia fazendo comichão em alguns estômagos… Não se vivem dias como aquele muitas vezes, nem tão pouco oportunidades destas surgem frequentemente. Afinal de contas era o primeiro jogo internacional do Eléctrico, as bancadas estavam repletas de gente e a transmissão televisiva sempre se verificava. Tudo isso nos fazia sentir ao mesmo tempo pequenos e orgulhosos. Equipámo-nos e demos o grito de guerra com uma emoção especial. Entrámos em campo ao ritmo do chamamento dos nossos nomes um por um aos microfones da instalação sonora do estádio: “ Do Eléctrico de Ponte de Sor de Portugal, com o nº1: Sérgio, nº2: Pachá…” e assim sucessivamente. Com a equipa da casa aconteceu o mesmo com a diferença de que a ovação vinda das bancadas foi naturalmente maior. Perfilámos e ainda antes de começar o jogo fomos cumprimentados um por um, pelo presidente da Câmara local e pelo ministro da cultura e desporto de Cabo Verde. O pontapé de saída foi dado por Grunha, uma antiga estrela do futebol da ilha com a particularidade de nunca ter envergado umas botas de futebol durante a sua carreira. Assim, foi naturalmente descalço, com o seu pé direito calejado, que aplicou um pontapé na moderna e colorida bola de futebol. Eu e o capitão adversário acompanhámo-lo até sair de campo e finalmente ia começar a partida.

Em relação ao jogo em si não me queria alongar muito… O resultado final foi 3-1, sendo que marcámos primeiro, por Serrano, o nosso único goleador internacional (agora aturem-no!) e sofremos o empate ainda na primeira parte. Na segunda parte quebramos fisicamente. Através da cobrança de uma grande penalidade, os da ilha chegaram ao 2-1 e já no final a vantagem foi dilatada para 3-1. De referir a excelente e até surpreendente qualidade de alguns jogadores adversários, mas sobretudo a enorme capacidade física de todos, onde residiu, a meu ver, a grande diferença para a nossa equipa. No Eléctrico, destaques para as exibições de Panqueca e sobretudo de Pachá. A importância do jogo para a ilha de Santo Antão e para a sua selecção foi bem notória aquando dos festejos pela conquista do troféu, tanto por parte da equipa como do público. Quanto a nós… Fizemos a festa também, claro! Juntámo-nos aos mininos e era ver-nos a saltar abraçados a eles. E eles estupefactos, a adorarem nossa a reacção. Foi mais um belo episódio! Recebemos então as medalhas das mãos dos ilustres.
Depois era ver o Baleizão a ser entrevistado para a televisão e rádios, outros a falarem para a rádio, os putos todos a pedirem-nos os equipamentos, as botas, foi a loucura… A saída do estádio, já sem equipamentos, botas, caneleiras, foi escoltada pela polícia, não por uma questão de segurança, já que não houve nenhum registo de abuso de qualquer natureza (pediam tudo, mas sempre humildemente), mas por uma questão de haver espaço para fazermos o trajecto dos balneários até ao portão, tal era a quantidade de gente que ali estava. Descemos a rua até ao hotel e íamos comentando o que tínhamos acabado de viver. Estávamos ainda a saborear aqueles momentos, enquanto havia gente, sobretudo crianças que nos seguiam. Lembro-me de ver o Carlitos com dez miúdos à volta: “Carlitos, Carlitos, dá-me a camisola…” Podia ser a camisola, um aperto de mão ou um abraço, mas o que eles queriam mesmo era estarem ali junto de nós. E nós sem sermos as estrelas que eles mereciam que fossemos, mas a curtirmos cada segundo.



Depois do jogo jantou-se no hotel com a equipa adversária. Uma banda animava a malta e iam-se entornando as primeiras cervejas ouvindo mornas e funánás. Antes de começar houve ainda lugar a discursos: os presidentes da Câmara (os de lá e o de cá), o presidente o Eléctrico e os capitães de equipa. Aí é que a porca torceu o rabo… O bom do Roger a tremer enquanto tentava pôr em palavras um pouquinho do que a equipa tinha sentido naqueles dias. O objectivo não foi cumprido, o discurso saiu fraquinho. O que eu queria dizer era que tínhamos experienciado uma verdadeira lição de vida e que estávamos imensamente orgulhosos de ter representado a nossa terra e o nosso país, depois agradecia a oportunidade e dizia obrigado, ouvia as palmas e sentava-me, era só isso, tinha sido tão fácil... Mais tarde, depois do repasto foi diferente, cheios de confiança monopolizámos o palco e começamos a cantar umas modas, ora portuguesas (“Os meninos à volta da fogueira”), ora Cabo-verdianas (“Sodade, sodade, es nha terra Ponta do Sol…”), sempre bem acompanhados pela banda. Neste capítulo tenho que destacar a afinada participação de Mário Leitão, o surpreendente cantor galveense que já não largava o microfone. Estivemos bem! Saíram os jogadores adversários, entraram as miúdas do staff do estádio, para ensinar a malta a dançar as mornas. Alguns desenrascavam-se bem, outros nem tanto… Mais tarde na discoteca toda a gente deu um pezinho de dança e foram bebidos litros de ponche - grogue com mel e limão, acho eu - só sei que aquilo colava… Havia quem contabilizasse a quantidade de ponches, enquanto outros estavam interessados em dançar com o maior número de miúdas possível, enfim, foi uma folia bem engraçada! “Óh Nariná, ohhh Nariná…”“Ó puto, ó puto, depois tens que me arranjar essa foto….” Repetia o Pessoa para o Luis Carlos, enquanto este se assumia como o fotógrafo da noite.

O dia da partida chegou e foi com um brilhozinho nos olhos que, no nosso autocarro Toyota, fomos vendo Ponta do Sol pelo vidro de trás a ficar pequenina, ainda mais pequenina. Isto, claro, depois de termos tido uns quantos ”fãs” à porta do hotel a gritar “Eléctrico, Eléctrico”. Eram os nossos putos… No caminho até Porto Novo houve ainda lugar uma efeméride bem divertida. Passou na rádio a musica do Carlitos. Foi o delírio… “Alô, sou Carlitos, vim hoje da Roménia…” Os juniores assistiam mais uma vez espantados e por certo pensavam: “Quanto mais velhos piores…” E tinham razão!

O “Armas” já nos esperava no cais. O mar parecia mais agitado do que na vinda, com farrapos brancos levantados pelo vento, parecia que protestava a nossa partida da ilha. O sol reflectia-se no branco do barco e uma envolvência âmbar emprestava aquele momento algo de melancólico. O sentimento tão português, cantado em crioulo pela diva de São Nicolau, já parecia tomar conta de alguns olhares que se iam deixando perder num último vislumbre das montanhas.


Finalmente foi o Mindelo outra vez, menos puro, menos inocente, pagando a factura de já ser um centro urbano. E a viagem de volta, sem dormir, a dormir por aí, espalhados em cadeiras e pavimentos de aeroportos, a dormir no avião também. Lisboa já lá em baixo, cheia de sol a abraçar-nos de volta. Vínhamos diferentes, tínhamos aprendido, tínhamos crescido e por certo não iríamos ver a nossa realidade da mesma forma…