sexta-feira, agosto 17, 2012

Ensaios

“Não sei, tu é que tens de decidir.” Respondo-lhe eu perscrutando-lhe o olhar, tentando ver nele a resposta que queria que lhe desse. “Mas não tens ideia nenhuma?” Pergunto-lhe vagamente, para lhe arrancar mais umas pistas. Mas não chegam, apenas o olhar absorto, perdido em indecisões e ponderações, exercícios de equilibrismo para os quais a sua mente está longe de estar preparada. Pela inexperiência, pela imaturidade, pela ingenuidade dos dezasseis anos de vida, que agora me parecem tão fugazes como este café que engulo de uma vez. “Lembro-me de uma vez ter escrito sobre isso, debatia-me eu com indecisões, no tempo em que tu não eras nascida, estava perante o que eu pensava ser uma grande encruzilhada. Afinal era só mais uma escolha que tinha de fazer. Sabes, grandes ou pequenas, todas as decisões te vão influenciar. Às vezes, até o mais pequeno detalhe nos muda completa e irremediavelmente, o mais pequeno fôlego pode ser determinante. Sei que são chavões, filosofia barata dita ao desbarato, mas a escolha de um caminho não obedece a regras definidas à partida, há muito mais de intuitivo nisso do que matemático, digo eu agora. A procura interior tem de ser tua, a introspecção, a luta que travares agora revelará a tua escolha tanto melhor, quanto maior ela for, a luta. Enfim, sei que não te estou a ajudar nada, mas conheço-te desde que nasceste. Mesmo. Vi-te a ver o mundo pela primeira vez, a respirar pela primeira vez e sabes?! Os teus olhos já vinham abertos e a absorver tudo, não eras uma bebé normal com os olhos inchados e vagos. Não, encontro-te agora mais perdida, do quando te olhei pela primeira vez nos olhos, enormes, sem cor definida, mas a observarem-me com uma força inexplicável, com um poder sobre mim, arrebatador. Desde então que achei que estarias fadada a uma vida singular, cheia.”
Apreensiva, continuavas de olhos vidrados no rio, a seguir os carros que seguiam vagarosamente na ponte, o vento puxava-te os cabelos para o rosto e abanavas a cabeça para que saíssem. A pele do rosto branquinha, parecia porcelana a reflectir um raio de sol que passava por entre as folhas dos choupos e te iluminava só a ti. Num flash, apercebi-me da linda mulher em que te tornaste e quedei-me, outra vez, pedrado de orgulho. Interrompi novamente o silêncio, quase emocionado com o cenário que absorvia:
“Achei sempre que podias vir a ser aquilo que nunca fui, mas que pensava que ia ser: brilhante! Tu ainda minúscula, tão pequenina e magrinha, os dedos longos, os olhos grandes, as pestanas maiores que tu. E eu a imaginar-te no futuro, sempre bonita e saudável, claro, com o mundo na mão. A girar à tua volta, a lua.
Às vezes imaginava-te genial, muito inteligente, mas depois só te queria muito feliz. Outras vezes imaginava-te com um talento qualquer especial, como aqueles miúdos que aparecem na última notícia do telejornal porque com três anos já sabem tocar piano como os melhores intérpretes do mundo. E eu sempre muito orgulhoso. Mas depois só queria que fosses normal. Mas um normal diferente do normal que eu sou. Um normal absorvente, atento, à descoberta, sem pressa, desprendido, livre, dado. E agora aí estás tu, de olhar no infinito, sem escutar nada do que para aqui estou a dizer, com dúvidas face a um futuro, a uma ocupação, a uma vocação que não sabes se existe, se é, se será. Quem me dera ajudar-te, mas está na hora de seres tu, de abrires as asas contra o vento e seres livre e brilhante.”
“Diz pai. Não te estava a ouvir.”
“Eu sei, filha, eu sei…”



segunda-feira, junho 04, 2012

Benvinda Sejas Maria


Benvinda sejas
À grande casa solar
A este tempo finisecular
Hoje é o teu dia de estreia
Olha à volta tens a casa cheia
Há estrelas e rios na plateia

Tudo isto é teu
Aquém e além do horizonte
A brisa que afaga o amieiro
E a água na fonte
Benvinda sejas, maria
Benvinda sejas, maria

Por ti as águias velam
No cimo dos montes
E a lua rege
O orfeão das marés
À noite os poetas
Decifram os lunários
Para ver se conseguem
Descobrir quem és

Tudo isto é teu
A terra é tua serventia
Mas vais ter de lutar
Por ela e por ti em cada dia
Benvinda sejas, Maria
Benvinda sejas, Maria




Rui Veloso, Bernardo Sassetti

sexta-feira, junho 01, 2012

Maria,

Vou continuar a escrever-te como se lesses, já. Agora que és uma realidade de três quilogramas, que te tenho nas palmas das mãos, que te aperto contra o peito, te cheiro com força, te beijo levemente para a barba não te picar, te sussurro ao ouvido palavras tontas, te seguro de mil maneiras diferentes quando choras, ou adormeço contigo aninhada nos meus braços. Agora, que te beijo outra vez quando saio de manhã, que subo as escadas mais depressa quando chego à tarde, na ânsia de te ver, pegar, cheirar, sentir. Agora, já não há nada a fazer, estou irremediavelmente apaixonado por ti, até ao mais ínfima grama do teu ser.

sexta-feira, abril 20, 2012

Ultras da Ponte

Afigura-se-me obrigatória a dedicação de umas linhas ao renascimento dos Ultras da Ponte. Se por um lado pouco haverá a acrescentar ao que já foi escrito, dito ou cantado, por outro sinto que, em jeito de agradecimento, reconhecimento e homenagem, devo pelo menos tentar enaltecer ou assinalar o momento que se vive.

“Não há palavras”, foi assim que comentei numa rede social um vídeo da nossa claque no último jogo em casa, que espelhava um pouco do que se passou nessa tarde. Mas há sempre palavras. O que acontece é que será sempre injusta ou até inglória qualquer tentativa de materialização em texto de certas e determinadas sensações ou ocasiões. Portanto, dizer que me senti muito honrado, privilegiado, sortudo, será sempre pouco. Dizer que parecia um puto a receber um presente, que nem sabia como havia de estar, como reagir, que me surgiram forças desconhecidas em momentos de desgaste, que me arrepiei umas quantas vezes numa sensação inexplicável, fininha, pela “espinha” acima, que nos deixa em pele de galinha. Admitir por exemplo, que no final não contive umas lágrimas de emoção, tamanha era a sensação de que estava a experienciar algo único, vivido por poucos e, como tal, valorizável. Enfim, quem me dera apanhar esse momento e emoldurá-lo na alma. Dito assim, já talvez reflicta um pouco do que se passou…

Analisando mais friamente, “mais com a cabeça do que com o coração”, como se diz na gíria futebolística, os Ultras da Ponte representam muita coisa. Representam uma geração, uma cidade, um clube, uma ideologia, uma forma de estar, uma atitude. Manifestações desta natureza, com base em pilares como a fraternidade, a amizade, a união, o companheirismo, alguma loucura (da boa, claro está) e muita vontade, são exemplares e devem ser engrandecidas. Fosse a nossa sociedade em geral movida por tais intentos… Note-se que esta não uma claque impessoal, de um clube grande, em grandes competições, com aspirações enormes. Não, esta é uma claque de amigos do pessoal que está dentro do campo. É a mesma malta que grita por quem corre, que a seguir bebe uma imperial e fala de carros, bola ou música, com os que estão lá dentro. E os que estão lá dentro não são os ídolos inacessíveis e adorados. Não, são os amigos dos que estão lá fora, incansáveis, loucos, vibrantes, a gritar por eles. O que torna tudo isto quase profético, lindo. Não sei se haverá muitos exemplos destes por aí.

Releve-se ainda a carolice e a pro-actividade dos mentores da Instituição, sempre a diligenciar a arranjar novos cânticos e bandeiras e faixas e agora cachecóis. Alguns fazem quilómetros para marcar presença, abdicam de muita coisa, enfim, digna de registo esta entrega. E, já agora, os cachecóis estão o máximo. Parabéns.

“Ultras”, na nossa terra, já se tinha metamorfoseado em muito mais do que uma simples palavra ou termo. “Ultras” atingiu, já há algum tempo, um estatuto de conceito abrangente e metafísico, infinito, inesgotável, porque não. E é sabido que se utiliza ao desbarato: como quem cumprimenta, como quem se despede, como uma interpelação ou exclamação, etc. Talvez alguns nunca tivessem percebido o que é que teria levado a que uma simples palavra atingisse tamanha importância no léxico pontessorense. Agora, a história reescreve-se e entende-se, experiencia-se e vive-se este estado de alma. Alma Eléctrico, Alma Ultra. Ultras?!


quinta-feira, abril 19, 2012

Incerteza

A incerteza no futuro lateja entre os pares. Os lamentos gritados amalgamam-se com as alvitradas soluções, teorias, políticas, filosofias , ideologias, conjecturas, hipóteses, devaneios, às vezes, numa dança obscura, sem música, sem fim, sem luz ao fundo. Inundados por tudo isto, à procura do alheamento a tudo isto, seguimos formigas no carreiro. Seguimos, hipnotizadas, a bater com a cabeça nas que vêm no sentido contrário, sempre na mesma direcção. Interrogações sobre a segurança de outrora que agora já não é nem será, sobre a hipótese do abismo, do salto para fora do tal carreiro, sobre possíveis consequências de actos, atitudes, decisões que, aos olhos de uns tresloucadas, de outros, corajosas. A passagem, consensualmente efémera, tem de ser isto? O carreiro é o que nos resta?



sexta-feira, março 16, 2012

Não abri os olhos (I, II, III, IV, V)

I


Entraste no quarto a invadir o silêncio. Conseguia perceber que te movias, sabia exactamente onde estavas. Não abri os olhos. A minha respiração a mesma, como se ainda sonhasse tranquilamente. Na face um sorriso estúpido, as bochechas espalmadas na almofada, o cabelo com jeitos incorrigíveis e o mau hálito matinal, tudo boas razões para continuar a fingir que dormia. O cheiro que invadiu o quarto ao mesmo tempo que tu, denunciava um banho tomado e que possivelmente te passeavas nua, com o cabelo molhado, enquanto escolhias a roupa interior. Sentia uma frescura no ar que deslocavas e percebia exactamente quando te encontravas no meu campo de visão. Não abri os olhos. Ainda assim continuei a fingir um sono profundo, alheio a um espectáculo que, talvez por masoquismo, me privava de assistir. Não abri os olhos.


Apesar de ainda na cama, sentia-me fresco, vigoroso, capaz de num salto me levantar e mostrar-me fisicamente capaz, forte. Teria apenas de accionar o mecanismo, o meu cérebro processar a informação e num ápice: Ops! Não abri os olhos. Continuei imóvel, espalmado sobre e entre os lençóis, imiscuído no colchão, quase fundido com ambos. Saíste.


II


Continuei acordado. Não abri os olhos. Ouvi a porta fechar-se e aí sim, resolvi levantar-me. Contudo, o som longínquo da gaita de um Amola Tesouras impediu-me de saltar da cama, irrompeu como que a travar a ordem que já havia dado às pernas. Fiquei a ouvi-lo. Não abri os olhos. Imaginava o esvoaçar do cortinado, pois sentia a brisa fresca a invadir o quarto e a arrepiar-me, ao mesmo tempo que a melodia inconfundível me inebriava e transportava para mundos imaginários. Acontece-me. A rara melodia da gaita do Amola Tesouros parece que não é de cá. Aliás, o próprio Amola Tesouras encerra uma origem enigmática. Imagino-o numa manhã fria a sair de casa, uma casa baixinha, no campo, a porta envolta numa videira e um banco ao lado. A luz do dia ainda pouca, pega na bicicleta, gaita ao pescoço, presa por uma fita de cabedal, e vem por entre o nevoeiro e as luzes ainda acesas dos candeeiros velhos até à vila, sempre a descer pela estrada de pedras, porque mora num monte. Chega com a luz do dia, ninguém sabe o seu nome, não deve ter família. Toca pela primeira vez a gaita no silêncio da vila, emprestando-lhe uma banda sonora perfeita. Já sem o nevoeiro, sobre a calçada escura vai por aí fora. Ruas, ruelas e ninguém com uma tesoura para amolar. Nunca vi um Amola Tesouras a amolar uma tesoura. Não sei se já vi um Amola Tesouras. O som da gaita sim: “Tiruriruriiii… Tiruriruri…” Ouve-se de quando em vez, de vez em quando, não sei quando. Nunca se está à espera quando se ouve aquele som. Ninguém deve saber quando vem. O som mais próximo, mais nítido, não oiço mais nada a não ser a gaita do Amola Tesouras, aqueles tubos paralelos, do maior para o mais pequeno, do grave para o agudo, do agudo para o grave. Não abri os olhos.


Será que dormitei? Ainda ouvia o som, ao fundo, quase que o vi a ser levado pelo vento, em tons amarelo-torrado, o som. Não abri os olhos. Estava acordado, devia levantar-me. Que horas seriam? “Que dia é hoje?” Perguntei-me sem querer saber a resposta. O quarto menos fresco, o sol já devia projectar-se no pavimento a imitar madeira. Continuava deitado, o corpo imóvel, esparramado, mas a mente em devaneios, a absorver. Não abri os olhos.


“Chega! Vou levantar-me”. Mas primeiro abro os olhos. O que verei quando os abrir? Lençóis, pedaço de cama, tapete, parede branca, chão… Hei! Hum! Que cheiro é este? Peixe a assar, há um peixe numa grelha a libertar aromas que enchem bocas de água. Lambi o lábio superior, parece que assim passei a sentir melhor o cheiro, ainda suave, que agora entrava pelo quarto. Não abri os olhos. Vi o peixe na grelha, escalado. Pedras de sal em cima. Depois vi-o no barco, acabado de pescar, a saltar ainda, reflectindo luz reflectida pela lua das cinco da manhã. A luva do pescador, de borracha, a envolvê-lo, a atirá-lo para junto dos seus pares, companheiros de cardume, agora agonizando, aos saltos, encandeados pela luz do barco, amarela, sem perceberem nada. Vi-o momentos antes da rede o içar para um mundo que não o seu, no indigo daquele mar, quase estuário ainda. Vi-o, com a voracidade que só ele parecia ter, a engolir de uma vez um mais pequeno, distraído, assustado com o aproximar de um vulto enorme à superfície. O vislumbre da ponta do cigarro do pescador, assomado na proa, não o demoveu de perpetrar aquela que seria a sua última caçada. Não abri os olhos.


Percebi que tinha fome, devia ir comer. Levantar-me e ir comer era o que devia fazer. Dizia-me o corpo, algo cansado de lutar contra mim, que continuava ali, espalhado pela cama. O quarto quente já, o dia a meio e eu: os olhos fechados. Não abri os olhos.


III


E se, por via da total inactividade e consequente poupança de energia, conseguisse ignorar completamente a fome? Não abri os olhos. Concentrei-me no estômago, que existia empurrado contra o colchão, entre eles o lençol, a pele e demais tecidos. Imaginei-o vazio e eu lá dentro, pequeno. Estava escuro. Equilibrava-me na parede húmida, cavernosa, irregular, vermelha viva, viva. A superfície escorregadia e lá no fundo uma pequena poça de líquido esverdeado a emanar vapores ácidos. O cheiro: impossível. A poça cada vez mais pequena, como o fundo de uma banheira entupida cujo ralo deixa passar a água muito devagar. Formava-se uma bolha de ar no centro e, quando rebentava, sumia-se mais um pouco do líquido pelo orifício. Nesse instante um barulho enorme e salpicos pelas paredes. Não abri os olhos. Percebi os ruídos que o meu estômago produzia, mas decidi ignorá-los.


O quarto quente, a fome, a cama, eu e o quarto. Levitei e saí do meu corpo, não abri os olhos. Abandonei-me, subi até ao tecto, sentei-me no candeeiro e fiquei a observar-me. Os olhos fechados, costas nuas, lençol pelas pernas, a cara esborrachada contra a almofada. “O que fazes aí?” – perguntei. “Daqui vejo crianças lá fora, uma bola a saltar à frente delas e gritos. Jogam à bola.” Sim, de facto distinguia os sons da futebolada que acontecia não muito longe da minha janela. De repente era eu a bola. Não abri os olhos.


IV


Era pontapeado de todas as formas possíveis. O jogo era uma anarquia completa, as crianças disputavam-me como se do septo mais sagrado se tratasse. Levantava voo e sem cair no chão era de novo pontapeado. Apesar de tudo eram suaves, os impactos de que ia sendo alvo, mesmo quando me despenhava no chão e saltitava e rodopiava à espera de outro pontapé, não sentia senão suaves embates. Parece que tudo se passava a uma velocidade muito menor do que a real. As crianças tentavam jogar o mais rapidamente possível, como tem de ser, mas a minha percepção era de que tudo acontecia lentamente. A distância a percorrer entre o pontapé vitorioso e a baliza improvisada na porta da garagem demorava tempo suficiente para ir apreciando a paisagem. As obras, a roupa estendida, a vizinha à janela a sacudir a toalha do almoço, o vizinho a passear o cão irritante. Não abri os olhos.


Do candeeiro, via-me inactivo, quase que conseguia ouvir o meu cérebro a ordenar-me que me levantasse. Os barulhos do estômago: desistiram de mim. Mergulhei-me. Não abri os olhos. Continuei a respirar para cima da almofada húmida de baba. Sentia o cabelo despenteado, a barba espetava-se no lençol. O quarto cada vez mais quente, a fome, a cama e eu e o quarto. Apurei todos os sentidos na tentativa de absorver algo que me levasse noutro devaneio. Divertia-me o exercício. Saia de mim, mas ali continuava. Não abri os olhos.


V


Imaginei o cortinado a esvoaçar, quase que o senti a tocar-me na perna quando uma brisa, já mais fresca, entrou suavemente pelo quarto. Não abri os olhos. Arrepiei-me. Concentrei-me no arrepio. O arrepio tem qualquer coisa de metafísico, é difícil explicar, com certeza há estudos sobre o fenómeno, teorias, fábulas ou crenças, mas aquele tremor, o eriçar dos pelos dos braços, o friozinho a percorrer o corpo são sempre sensações que nos abstraem do resto. Sente-se um arrepio e não se pode ser indiferente a ele, é isto. E é bom, quase sempre. E depois podíamos debruçar-nos sobre as causas, que podem ser as mais variadas e, mais interessante, podem ter origem puramente física – arrepio de frio – ou simplesmente mental – ouvir aquela música, naquele momento. Arrepiando caminho (sei que foi fácil, mas tinha de ser…): já disse que estava na cama, imóvel, em viagens mentais, a lutar contra o cérebro que queria que me levantasse e fosse comer, enfim, estamos nisto e vem o arrepio. Eriçam-se-me os pelos dos braços e vão pelas fibras dos lenços, colchão e são raízes de árvore à procura de água em solo estéril, seco. Sou uma árvore do deserto, uma daquelas famosas Joshua Tree, com uns mil anos de vida, a ver passar coiotes, cascavéis e à noite as borboletas, o céu com estrelas diferentes, já as devo ter contado todas. Um vez vi um homem e, no minuto seguinte, passavam comboios mesmo perto de mim. Já não passam, a linha foi engolida por areia e ervas sempre secas. Um dia destes, uma dessas ventanias vai-me arrancar e cairei e a areia engole-me também, enquanto isso vou dormindo sob o sol abrasador à espera da estação húmida. Aí, as minhas raízes absorverão até a menor das gotículas de água e floresço durante uns dias. Estou dormente, à espera da estação húmida, para florescer. Não abri os olhos.


O sol já deve ir no seu sentido descendente, o quarto arrefece e eu em arrepios de frio, mas imóvel, sem abrir os olhos. Fome, frio, o corpo dormente, a experimentar a imobilidade. Comigo, com os desvarios, em testes, em desafios, sem objectivo, num vazio preenchido apenas por sensações entre o palpável e o nem por isso. Oiço a televisão de uma casa qualquer perto e tento não lhe prestar atenção, não vá reconhecer um qualquer genérico que me situe temporalmente. Não quero saber as horas. Não abri os olhos. De quando em vez, um carro passa na rua e agora uma sirene ao longe, na estrada nacional. Em estridentes variações de frequência sonora e flashes azuis. Oiço-a só a ela agora, ensurdecedora, os flashes azuis passam-me mesmo em frente aos olhos e quase me cegam. Não os abri, os olhos. Sou a garrafa de soro pendurada, aos solavancos, ao sabor das curvas e lombas da estrada. Lá em baixo, numa imagem meio turva, distingo alguém em volta da marquesa, movimentos rápidos, urgentes. Uma travagem brusca e precipito-me no chão da ambulância. Rebolo sem parar e quase perco o líquido, para um lado, para o outro, não oiço nem vejo mais nada, só luzes rápidas e difusas. Nisto, uma mão forte levantou-me e apertou-me, pude ver-lhe os olhos a inspeccionarem-me. ”Safou-se por pouco.” Não abri os olhos.


Já deve ser quase noite. A porta a abrir-se, oiço-a e estremeço, mas só por dentro. Não abri os olhos. Entras no quarto a invadir o silêncio, trazes calor contigo ao quarto frio e adivinho-te a aproximares-te da cama, debruças-te sobre mim, encostas quase o teu rosto ao meu, os cabelos sinto-os nas minhas costas frias, o arrepio. E dizes a sussurrar: “Abre os olhos!”.