sexta-feira, março 20, 2009

Vivo com ele...


Já não sou eu que vos escrevo. Este que vos fala não é agora o mesmo. Pode voltar a ser, vai voltar a ser, mas não o é. E porquê? Porque reparte a existência, que se quer una, singular, própria, com um herpes colossal. E podem pensar que exagero ao pôr as coisas nestes moldes, mas deixem-me argumentar…
Ter uma crosta entre o lábio superior e a narina direita, visível da lua a olho nu, por si só já não é fácil. Eu, que tenho estas manifestações fúngicas amiúde, até já devia estar habituado a conviver com elas. Mas a verdade é que de cada vez que uma ligeira comichão, um pequeno ardor se inicia na zona abaixo do nariz e por cima do lábio superior, ou seja, se eu tivesse nascido uns anos mais cedo e seguido uma carreira futebolística nos anos 80, na zona do bigode. Cada vez que aí sinto uma pequena fogueira, já sei o que aí vem. E fico imediatamente afectado, o mundo desaba (novamente) sobre mim. “Porquê? Porque é que apareces agora? Assim, sem avisar?!” São algumas das perguntas que faço ao espelho, enquanto me demoro a observar com admiração a pequena organização de fungos, consumindo parte da minha epiderme, transformando-a numa pasta amarela e depois numa crosta, variando entre tons esverdeados até tradicional castanho avermelhado. Depois solta-se, destapando finalmente a nova pele que cresceu entretanto, por debaixo. A totalidade do processo demora cerca de duas semanas.
Se ao menos houvesse uma causa conhecida para o despoletar do fenómeno. Se eu pudesse evitar de alguma forma… Por exemplo, se a causa fosse a ingestão de um marisco bivalve originário da Polinésia Francesa, eu sabia que se o ingerisse, por melhor que fosse o seu sabor e o prazer que teria, conviveria duas semanas com a manifestação de um bicho que vive debaixo da minha pele há uns tempos. Podia então ponderar: “será que vale a pena? Hmm, para mim são uns percebes, fachavor.” Mas não, não há razão, não há causa aparente, o ser não escolhe datas (quer dizer, às vezes parece que escolhe: as mais impróprias), não tem preferências por nenhuma estação do ano em particular, enfim, aparece, simplesmente, sem dar cavaco. E eu que o ature, irremediavelmente!
Não é fácil… Primeiro vem a negação: “ Não, se calhar é só uma borbulha…” Quando no fundo já sei que não é. Depois a aceitação: “Foda-se, um herpes…” Segue-se a tentativa desesperada de iniciar uma acção rápida que impeça a aparição. “Gelo, preciso de gelo para queimar já o cabrão todo!” A intervenção falha quando se constata que depois de derretido o quinto cubo de gelo consecutivo, ele continua vivo e até parece gostar do desafio. A seguir vêm as tentativas de consolo: “Eu costumo curar isto rápido. É na boa, deixo crescer a barba e isto nem se nota.” Ah pois não, nota-se lá agora!!!
O que mais custa não é o ardor, não é a comichão ou o desconforto físico em si. O que é penoso é a convivência com ele. Parece não haver forma de esquecer que ele ali está. Consigo mesmo vê-lo, se fizer assim ao lábio e olhar para baixo. Olha, lá está ele, ali ao lado da ponta do nariz. Está desfocado, mas é ele, reconheço-o. Já o conheço desde que nasceu, acompanhei toda a sua evolução ansiosamente. Vi-o no auge da carreira e agora que está decadente fico cada vez mais feliz, sabendo o seu fim se aproxima vertiginosamente. A sua existência, apesar de curta, foi intensa e vigorosa. O seu fim será súbito, quando o último pedaço de crosta cair…
Não deve ter passado um minuto, nestas quase duas semanas em que fomos dois, que eu não me tenha lembrado que o carrego na face. Não deve ter existido um minuto que, por mais que eu evitasse, não lhe tivesse tocado com o indicador, na esperança de que a crosta já estivesse madura o suficiente para, acelerando o processo, eu a arrancasse cuidadosamente, sem prejuízo para a frágil epiderme que entretanto se regenerou…
E depois é a sociedade… O mundo não compreende, o mundo ainda não tolera certas diferenças. Quantas pessoas passam por mim e apontam, enojadas, às vezes mesmo de forma jocosa… (Agora sim, exagerei…) Não, a sério, o pessoal pergunta: “ O que é isso, pah? O que é que aí tens?”, apontando para o próprio bigode, franzindo a testa, engelhando o nariz, com uma expressão de solidariedade, mas que não deixa escapar um laivo de alívio, por não serem eles as vítimas de tal enfermidade. Não são raras as vezes que dou por mim, de forma inconsciente, a tapar com uma das mãos a zona afectada, enquanto dialogo com alguém, envergonhado, afectado, desconfortável, enfim, sem ser eu.
Bom, depois de tudo isto, espero que me tenham compreendido e percebam a hipérbole que encerra toda esta exposição. Um beijo… Epah, um beijo não, que estou com herpes! Um abraço (mas não muito apertado, ok?!).

1 comentário:

Anónimo disse...

Bem, essa descrição é pertfeita!