sexta-feira, março 06, 2009

"Somos unha com carne ou não somos?


Trata-me por padrinho estou para saber porquê: razões que só ele entende. Esteve preso uma porção de anos, catorze, quinze, traficava pó, metia pó, continua a traficar pó e a meter pó, na semana passada procurou na meia esquerda
(na meia direita trazia dinheiro escondido, uma porção de notas)
tirou da canela um par de saquitos
- São para você, padrinho
e lá fiquei com a coca na palma enquanto ele me dava um beijo
- Somos unha com carne ou não somos?
na esperança que eu corresse para casa a enfiar o presente pelo nariz acima. Afaina-se para uns rapazes russos, de vez em quando pede dinheiro às pessoas com uma navalha persuasiva, cheia de argumentos: parece que a navalha torna as pessoas generosas, sensíveis às razões do meu afilhado. Na mão e no braço tatuagens da cadeia que exibe no orgulho com que se mostram carimbos de países exóticos no passaporte: Vale de Judeus, Pinheiro da Cruz, outras estâncias balneares, sítios de férias de luxo para ricos. Um amigo comum, estabelecido no bairro, aconselha-me
- Não se ponha a pau, não
a agitar o dedo avisador e não me ponho a pau. A pau porquê? O mais que ele faria era apontar-me as razões ao umbigo quando a branquinha lhe subisse à ideia. Garante, de lado
- Você escreve livros
e demora-se a olhar-me, pesando o facto. Em certa medida somos iguais
- Também já apareci no jornal
e nunca vi bochechas tão côncavas ao chupar o cigarro: o fumo deve chegar-lhe à alma e enovoa-la inteira. Contam-se-lhe os ossos de magro que está, faltam dentes. Interesso-me
- Mastigas com quê?
e encolhe os ombros, desiludido com a estupidez da pergunta: há-de existir um molar em qualquer parte, nem que seja no esófago, a roer ainda. Que me lembre nunca dei por ele a comer, dou por ele, aqui e ali, a trabalhar cálices de bagaço com sete ou oito cotovelos no balcão, pobre tarântula tão mal vestida, à beira de ser encontrada num jardinzeco qualquer, de agulha no braço, ou a bater, na vazante, contra a muralha do Tejo: já traz a morte na cara, e a boca desmobilada aparenta-se a uma concertina de pregas tortas. Mês sim mês não desaparece, acaba por voltar a puxar-me a manga
- Precisa de alguma coisa minha, padrinho?
espiando em volta, com medo. Não me conta onde dorme
- Por aí
não me explica onde esteve
- Lá está você
transformou os três pontos tatuados de uma das prisões numa estrela de David
- Há muito chibo nestas bandas
designa-me sujeitos que o perseguem em esplanadas onde não vejo ninguém, cola-se-me à orelha, confidencial
- Ando a faltar aos russos
e contrai-se de medo:
- Tem por aí meio euro que me empreste?
dado que um golinho de bagaço engorda a coragem e traz boas intenções consigo:
- Um dia destes trato-me
projectos de vida
- Internadinho para uma cura à maneira
certezas que o alcool ajuda
- Até sou capaz de me casar, palavra
com a voz a pedir colo, seguro de caber no meu
- Somos unha com carne ou não somos?
e não lhe poiso a palma no ombro para impedir que chore. Se calhar engano-me e está sequinho por dentro. Não, não está sequinho por dentro
- Eh pá consigo fico esquisito, padrinho
e um grão de ternura, intacto nele, a tremer, a arredondar-se, a transformar-se em lágrima que a manga limpa
- Tenho uma filha
que a mão não acaba de limpar
- Uma filha sabia?
puxo de mim
- Onde está ela?
e a resposta furiosa
- Lá está você
a empurrar-me
- Lá está você, carago
a detestar-me. Julgo que a faquinha vai vir e não vem, vem um murmúrio
- Padrinho
a convicção
- A gente os dois dávamos cabo disto
num gesto panorâmico a abarcar o mundo
- A gente os dois chegávamos
e ele, todo côncavo, a chupar o cigarrinho, a chupar. Segue rua abaixo a caminho de uma nova desdita, num passo vagaroso, oblíquo, enredando-se na trela do basset de uma senhora de idade
- Porra de cão
e a senhora, de saco de compras, apavorada. Salva-se da trela, continua, vira uma esquina, perco-o. Se o chamasse ajudava? Se concordasse
- A gente os dois dávamos cabo disto
melhorava? É a lágrima que a manga limpa que me inquieta. Também tenho uma ou duas, escondidas. Só que tão no fundo de mim que não consigo limpá-las. Não faz mal: ninguém dá por isso. E se dessem por isso não davam: de pequeninas que são confundem-se com a pele. Tens razão: unha com carne, afilhado, tens razão, a gente os dois dávamos cabo disto. Algum de vocês tem por aí meio euro que me empreste para enganar a coragem?"



António Lobo Antunes - in Visão



Independentemente do conteúdo, que é indubitavelmente interessante, de reflexão premente por todos nós, enfim um daqueles temas que nos toca sempre... Independentemente da abordagem fenomenal, queria só, do alto da minha ignorância sobre questões de semântica e sintaxe e demais particularidades da forma, dizer que achei este texto qualquer coisa de brilhante. Há uma espécie de fluidez na leitura desta peça que impressiona. E depois a descrição, que não é descritiva mesmo, sei lá... É de pensar que não vale a pena... Há quem o faça tão bem...

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