quarta-feira, dezembro 30, 2009

Quando me falaste dessa ponte...


Lembro-me dos sítios onde escrevi, quando gostei do que escrevi. Espero que me lembre deste quarto e desta cama, com esta colcha que me acompanha e que é boa. Gosto dela.
Quando me falaste nessa ponte… Quando foi mesmo? Desconfiei dela. Pois foi, lembro-me agora. Aquela não era uma manhã para acreditar nessas coisas. Havia sol, uma brisa suave tocava-te o cabelo e havia reflexos de âmbar na tua face. A claridade levava-te a franzir a testa e com os olhos semicerrados, falaste-me nessa ponte. Um misto de entusiasmo e mistério envolviam as palavras que ventilavas sussurrando. Mas aquela não era manhã para acreditar nessas coisas. Prendia-me mais facilmente na dança dos teus lábios, vendo-os articular descobrindo às vezes os dentes, do que no que descrevias. Aquela manhã não era manhã para acreditar nessas coisas. Bebeste o café num trago, parecias agitada. Nem desconfiaste que desconfiava do que me contavas. Nem desconfiaste quando aproveitei para te pegar na mão com a desculpa da reclamação da conta para mim e demorei os meus dedos na tua pele o quanto pude. Essa não era uma boa manhã para acreditar nessas coisas. A culpa não era do sol de Inverno, a culpa era dos teus lábios secos onde de vez em quando um cabelo e tu a afastá-lo com a mão. A culpa era dos teus olhos que às vezes cegavam os meus quando os encontravam. Desviava-os como quando fixamos o sol e já não aguentamos mais.
A história tinha espectros e anjos, acho que tinha criaturas e dimensões que não as nossas, tinha, parece-me, rios de vinho e árvores de ferro enferrujado, que não sabias como, mas aguentavam flores também de ferro. A história era de uma ponte para um imaginário que talvez fosse só teu. Mas aquela manhã… Sei a cor da tua camisola de gola alta, não sei dizer qual era, mas sei a cor que era. Se a visse agora, sabia. E tinhas aqueles brincos que disseste para te comprar no Natal, que estavam na montra daquela loja. Nunca tive coragem para te escolher um presente. Ou nunca arrisquei falhar nessa tarefa e desistia quando perguntava: “O que queres que te dê?” Tu, desapontada, mas compreensiva dizias por exemplo: “Estão uns brincos na montra daquela loja.” Os brincos eram bijutaria, mas eram um arco tão perfeito que parece que podia escorregar neles e segredar-te ao ouvido: “Não descrevas mais os restos de madeira da tosca ponte mágica com que sonhaste, ou que atravessaste mesmo, não quero saber como era! Diz-me antes que ainda me amas, que essa é só a tua realidade.” Como a realidade do poeta que lia poetas místicos e dizia por fim que as flores e as árvores existiam para existir, simplesmente. Aquela não era uma manhã para acreditar nessas coisas.
A história tinha aves de papel colorido que assobiavam colcheias e outras formas musicais e que esvoaçavam tipo as andorinhas. Dizias: “Tipo as andorinhas, muito ágeis e rápidas, percebes?” E eu: “Sim, percebo, mas e que cores tinham?” Não me interessavam mais cores que não o castanho dos teus olhos e o castanho do teu cabelo, ou mesmo a da blusa de gola alta que me lembro qual era mas não sei dizer agora. Só queria continuar a perder-me na dança dos teus lábios e na sinfonia do teu sussurro. E encorajava-te a descrever o que tinhas visto ao atravessar a ponte. Não me lembro bem, mas julgo que a descreveste pequena e tosca, como se feita para passar de uma só vez. Um amontoado imperfeito de paus imperfeitos de origens diversas. Era? Não sei, mas as tuas mãos tremiam um pouco. Talvez de frio, aquela esplanada aquecida pelo sol de Inverno era bafejada às vezes por aquela brisa que levavam os teus cabelos aos teus lábios e tu a tirá-los, maneando a cabeça ao mesmo tempo que a mão e… A ponte já não sei, aquela não era uma manhã para acreditar nessas coisas.
Queria que voltasses de lá e atravessasses no sentido da margem onde eu te esperava. Queria ter entrado contigo nessa realidade, fazer parte da tua história. Mesmo que com o corpo de papel colorido, a assobiar colcheias e a voar como as andorinhas. Podia ser. Assim talvez… Mas aquela manhã… Queria antes a realidade daquele rio e daquela ponte perto daquela esplanada onde a tua blusa e os teus brincos, os teus lábios com o cabelo e tu. E eu a tocar-te na mão como quem te chama para a realidade. “Ainda me amas?” era o que queria perguntar em vez de: E que cores tinham, os pássaros de papel que assobiavam colcheias e voavam como as andorinhas?”
Gosto desta colcha, espero lembrar-me dela…
FOTOS DE RICARDO CRUZ