segunda-feira, fevereiro 19, 2007

A Fonte que era da Vila...


“Fonte da Vila”. Ao ouvir esta frase qualquer pontessorense constrói imediatamente na sua mente, a imagem de um dos símbolos da nossa singular e simpática terra. Mas qual é exactamente a representação que imaginamos? Eu ainda idealizo uma bonita fonte em alvenaria pintada de branco, com duas bicas a verterem água e o brasão de D. João VI em relevo e a cores vivas. Vejo ainda a recortada sombra do velho freixo traçada na placa que identifica a rua: “Rua da Fonte”.

Datada do século XVIII, foi D. João V que a conselho do Dr. Francisco da Fonseca Henriques, decidiu aproveitar a nascente que do morro brotava água desorganizadamente e condicioná-la à geometria cilíndrica de uma bica. Acreditava o médico do reino que a sua água tinha propriedades terapêuticas, como escreveu no seu livro “Aquilegio Medicinal” de 1726: “Na vila de Ponte de Soro há uma fonte que tem conhecida virtude para achaques de pedra e areias, como se tem experimentado muytas vezes”

Assim, o fluido que antes apenas engrossava parcamente o caudal do Sor, ganhava novas responsabilidades e passava a inundar abundantemente as sequiosas gargantas das gentes da terra e viajantes ocasionais.

Dizia-se que a sua água enfeitiçava quem a bebia, que quem a provava não mais sairia de Ponte de Sor, ficando encantado pela terra para sempre.

Era também o sítio certo para conquistar moçoilas, como nos conta o poeta pontessorense Ismael Franco:

“Quem quiser uma donzela,

Vá lá à Fonte da Vila!

É onde à noite as raparigas,

Em tempos que já lá vão,

(Pelas noites de Verão)

Cantando lindas cantigas,

Iam francas, desprendidas,

Em cata dum coração.”

É vizinha da ponte, a que dá o nome à terra, essa ainda com mais história para contar… Travavam diariamente agradáveis diálogos sobre quem descia as escadinhas que as separam. Um outro vizinho ilustre acompanhava na cavaqueira… Era o enorme freixo que ali se estabelecia, altivo e orgulhoso com a sua abundante copa a fazer sombra às duas comadres de “calhandrice”… Foram centenas de anos a ver passar gentes: desde reis à plebe das mãos calejadas, servindo a todos sem olhar a títulos ou condição.

O freixo, esse morreu gloriosamente, sabendo que a ponte passaria a ter largura suficiente para as necessidades das pessoas… Pessoas que da sua sombra já tinham gozado o suficiente… Nada a dizer, foi um mártir, serviu-nos até ao fim e morreu por nós, como o Outro…

A fonte não morreu ainda, mas deve estar em coma profundo, coitada… Foi violentamente violentada, passe a aliteração a emprestar poesia à prosa. Já nem vontade lhe resta para trocar impressões com a renovada ponte, que com um tabuleiro assim, se tornou moderna e muito mais prestável.

Talvez por não poderem beber a sua inquinada água se tenham esquecido que existe. Já deve haver quem, em vez da imagem idílica, de local de eleição para namoricos e contemplações bucólicas, imagine um cenário mais sombrio, em que o sol não reflecte a água não potável que já nem jorra das duas enferrujadas bicas. Em que já não se namora a ouvir o constante salpicar do vital líquido na grelha decrépita, gozando a sombra frondosa do idoso freixo… Se calhar, até imagina horrendas inscrições a tinta de spray a conspurcar a cândida fachada. Se calhar já nem idealiza o honroso brasão, mas sim um borrão de cores esbatidas mesmo no centro, a confundir-se tristemente com as manifestações artísticas de um qualquer símio, que não acredito ser sapiens, ou sequer homo.

Não só está mal esteticamente, o que salta à vista imediatamente, como também padece de lesões estruturais provocadas pela percolação da água, que antes encontrava nas bicas um ponto de fuga e que agora, com estas entupidas, procura outros caminhos, nomeadamente as fundações da estrutura. E a crispante relação que água dura e pedra mole têm é por todos conhecida… O estado gravíssimo em que se encontra é recuperável, penso eu… Mas não por muito mais tempo, pois a água, que motivou a sua construção, pode ironicamente vir a ser o agente responsável pela sua destruição. A continuar assim, as deformações vão aumentar e a fonte corre o risco de ficar descalça e com as entranhas expostas.

Um famoso urbanista, David Linch, desenvolveu uma teoria sobre a cidade e o modo como a imagem de uma cidade é construída na mente de um seu visitante ou habitante. Defendia que havia cinco elementos que constituíam uma cidade: as vias, os cruzamentos, os bairros, os limites e os pontos marcantes. Claro que é abusivo tentar adequar essa teoria à nossa terrinha, mas é tudo uma questão de escalas… Como em Nova Iorque se identificam esses elementos, também em Lisboa ou em Ponte de Sor eles podem ser distinguidos. E se falarmos de pontos marcantes, a zona ribeirinha, de uma maneira geral: o rio, os choupos, a relva, as piscinas, a ponte e a fonte… A Fonte da Vila, encerra um conjunto que se pode classificar como ponto de referência ou marcante, sendo um espaço de lazer muito procurado entre locais e forasteiros.

Os símbolos vão mudando e evoluindo com o progresso da cidade, é certo. Mas os que já o são podem conviver com os que pretendem ser, ou não? Lá porque temos palmeiras coloridamente iluminadas e rotundas em homenagem ao canalizador, também podemos ter a velha fonte cuidada, não podemos? Ou os lagos e repuxos novos já deitam água suficiente para se namorar ao som do seu borrifar?

Tudo isto para relembrar a importância deste emblema da nossa terra e tentar assim sensibilizar quem de direito… Para que se intervenha a curto espaço de tempo e eficazmente, para que tenhamos de volta a fonte viva e aprazível. Mesmo que a sua água não se beba, a dos repuxos novos também não é para beber, portanto…

Acho que não exagero quando lhe enalteço a importância e digo que todos os pontessorenses têm por ela grande simpatia e estima… Como tal, espero que recupere depressa e acorde do coma, faça a fisioterapia adequada e volte mexericar com a ponte sobre a vida deste e daquele que por ali vai passando.