terça-feira, dezembro 20, 2011

Somos a primeira pessoa do plural

"Estamos tão perto uns dos outros. Somos contemporâneos, podemos juntar-nos na mesma frase, conjugarmo-nos no mesmo verbo e, no entanto, carregamos um invisível que nos afasta. Ouvimos os vizinhos de cima a arrastarem cadeiras, a atravessarem o corredor com sapatos de salto alto, a sua roupa molhada pinga sobre a nossa roupa a secar; ouvimos a voz dos vizinhos de baixo, dão gargalhadas, a nossa roupa molhada pinga sobre a roupa deles a secar; cheiramos as torradas dos vizinhos do lado, ouvimo-los a chamar o elevador e, no entanto, o nosso maior problema não é apenas não nos reconhecermos na rua. O nosso problema grande é estarmos convencidos que os problemas deles não nos dizem respeito. A nossa tragédia é acharmos que não temos nada a ver com isso.



Há três ou quatro anos, caminhava com um conhecido no aeroporto. De repente, ouviu-se um estalido. Ele agarrou-se ao peito com as duas mãos, caiu de joelhos e, pálido, esperou por morrer. Não morreu. Tinha-lhe rebentado um isqueiro no bolso da camisa. Aliviado, encostado a um balcão, a beber um copo de água, explicou que esse ardor repentino e esse susto pareceram-lhe um ataque cardíaco. Nunca tinha tido um ataque cardíaco antes, por isso confiou em descrições vagas, a que nunca tinha realmente prestado muita atenção.



Há alguns anos também, talvez um pouco mais do que três ou quatro, tinha acabado de participar num jantar cordial, reconfortante. Toda a gente estava bem disposta, à porta dos anfitriões, longa despedida, graças, à espera de táxi. De repente, tocou o telefone de um senhor com quem tinha estado a conversar durante todo o serão. Ninguém reparou nesse telefonema até ao momento em que o senhor começou a chorar convulsivamente. Ficámos todos a olhar sem saber como chegar até ele. Tínhamos braços, estendíamo-los na sua direcção, mas continuavam distantes.



Irritamo-nos com a existência uns dos outros. Fazemos sinais de luzes àquele homem com setenta anos, num carro dos anos setenta, que anda a setenta quilómetros por hora na auto-estrada. Contrariados, esperamos por aquela pessoa que atravessa a passadeira, enchemos as bochechas de ar e sopramos. Impacientes, batemos no volante. Daí a minutos, depois de estacionarmos o carro, somos essa pessoa a atravessar a passadeira. Da mesma maneira, daqui a algum tempo, não muito, seremos esse homem com setenta, dos setenta, a setenta. O tempo passa. Se deitarmos lixo para o chão, alguém o apanhará.



Um amigo que teve um AVC, que passou por uma reabilitação profunda, que enfrentou a morte e a paralisia, depois de anos de fisioterapia, depois de esforço gigante e sofrimento gigante, falou-me da forma como esse susto muda tudo. Passa-se a apreciar aquilo que realmente importa. A imensa maioria das preocupações transformam-se em luxos ridículos, desprezíveis, alimentados pela cegueira. Após essa experiência de quase morte, ganha-se uma nitidez invulgar, que, no entanto, esteve sempre lá. Para percebê-la, bastava levar a sério a promessa de transitoriedade de tudo e, também, levar a sério essa palavra, esse planeta: o amor. Ao ouvi-lo, fui capaz de entender aquilo que dizia. Depois, também fui capaz de entender quando me disse: mas, sabes, ao fim de algum tempo, esquecemo-nos, voltamos a tomar tudo por garantido e voltamos a cometer os mesmos erros.



Repito para mim próprio: estamos tão perto uns dos outros. Não há nenhum motivo para acreditarmos que ganhamos se os outros perderem. Os outros não são outros porque levam muito daquilo que nos pertence e que só pode existir sendo levado por eles. Eles definem-nos tanto quanto nós os definimos a eles. Eles são nós. Eles somos nós. Se tivermos essa consciência, podemos usar todo o seu tamanho. Mesmo que pudéssemos existir sozinhos, de olhos fechados, com os ouvidos tapados, seríamos já bastante grandes, mas existe algo muito maior do que nós. Fazemos parte dessa imensidão. Somos essa imensidão que, vista daqui, parece infinita. "



José Luis Peixoto, in Revista Visão (Dezembro 2011)

sábado, novembro 26, 2011

Maria,

Quando soube que aí vinhas fiquei muito feliz. A tua mãe, brilharam-lhe os olhos como em poucas ocasiões… Vou guardar o sorriso dela, deitada na marquesa, a doutora com o aparelhómetro em cima da barriga e umas imagens difusas num ecrã à nossa frente. A doutora cheia de certezas: “É uma menina! Se não for, pago o enxoval” A tua mãe a olhar para mim, os olhos dela a brilhar - já tinha dito que brilhavam? - a procurarem os meus e o sorriso. O sorriso… Linda a tua mãe a sorrir assim. Tu também serás, linda!


Retribui o sorriso, emocionado e fiquei a ver a médica a escrever: M-E-N-I-N-A, enquanto me passava tanta coisa pela cabeça… Toda a gente dizia que ias ser um menino. Teorias, teorias e todas pareciam apontar no mesmo sentido: menino! Mas sabes?! Só tínhamos nome para menina. Há muito que tinhas nome, sabias? Tu ainda uma suposição, um ténue esboço, uma longínqua hipótese e já tinhas nome. “Se tiver uma filha há-de ser Maria.” Depois a tua mãe e eu e: “Se tivermos uma filha: Maria.”


Enfim, depois lembrei-me da tua avó… Sabes que és Maria por causa dela? Não a vais conhecer, mas vou-te falar dela e vais ver: orgulho. Ia ficar tão contente a tua avó… Vais ter o sorriso dela e da tua mãe.


Tão feliz, a tua avó, tão feliz. E o sorriso da tua mãe, os olhos a brilhar e eu: “Maria!”

domingo, abril 03, 2011

A árvore que cresceu comigo


Na esquina das casas de madeira, do bairro pré-fabricado que substituiu as barracas, havia uma pequena árvore. A época de que falo parece agora longínqua, separam-nos do presente, no meu caso cerca de um metro, no caso dela uns dez ou doze. O espaço e o tempo confundem-se um pouco quando ali regresso, seja fisicamente, nos confusos sonhos em que sou pequeno, ou numa reconstituição mental de um golo marcado, por entre estendais de roupa a cheirar a sabão macaco e cardos afiados.

As brincadeiras eram sazonais, sem que um plano anual fosse traçado à partida, o interesse pelo berlinde aparecia quando o desinteresse pelo pião se acentuava. E assim aconteciam, independentemente da modalidade, as tardes inteiras de dedicação à mesma. O aperfeiçoamento das técnicas era notório, no final de cada dia éramos mais experientes: a pontaria melhorava, no caso da utilização da fisga, por exemplo.

O desenho da pista para as bicicletas, perto do monte abandonado, era orgânico e mutável e os montinhos de terra que permitiam o descolar das rodas do chão, eram tanto mais altos quanto mais tempo nos perdíamos por ali e, consequentemente, a técnica se ia apurando. Claro que uma queda mais aparatosa e/ou o comprometimento da bicicleta – que claramente não era desenhada para o efeito - podia significar um abrupto término da época. Rapidamente a ocupação era substituída por uma jogatana de bola. Sim, o futebol, latejava sempre naqueles terrenos e a decisão de iniciar uma partida podia partir a qualquer instante, sem complicações, sem horários marcados, necessidade de adequação do vestuário ou calçado. O impedimento maior era muitas vezes a falta da personagem principal. A bola. Muitas vezes fui o proprietário do esférico e fazia depender de mim a felicidade de uns quantos meus pares. Isso deixava-me contente! Quando tinha uma bola nova ansiava pô-la a rolar por ali. Nunca duravam muito tempo, a fraca qualidade do material também ajudava. Mas era sobretudo devido a uma utilização agressiva, em todos os cenários possíveis, que rapidamente se começavam a descolar peças geométricas de couro sintético. Depressa se tornavam todas cinzentas e daí até se começar a vislumbrar a câmara-de-ar de borracha por entre os pontos rebentados, eram dois ou três pontapés mais inflamados.

Eram tempos de liberdade total. É difícil hoje perceber como se podia ser tão imensamente feliz com aquela realidade apenas, sem planos maiores do que o instante seguinte. A verdade é que agora não se atingem, por mais que estejamos num bom período existencial (que tarólogo é que me possuiu o espírito?), momentos de descompressão, despreocupação, enfim, leveza, como os que ali experienciava.

“Anda lanchar filho” A minha avó à porta. Sem luto, desempenada, com força, a sorrir às vezes. Já não sorri há tanto tempo. Duvido que mais alguma vez o faça. A minha avó um pilar, a parede mestra. Depois um sismo, danos irreparáveis, anos a aguentar o que não podia e a cedência, o colapso. Antes avó e mãe e avô e pai, agora toda a tristeza do mundo nela. Um abismo feito gente, um farrapo, nas suas palavras. Como tudo muda. Merecia em vez de um parágrafo, um livro, mas só me saem estes arranques…É difícil.

Da porta da casa da minha avó via-se apenas a ponta da pequena árvore, por detrás do muro. Hoje já não há muro, as casas pré-fabricadas deram lugar a moradias e a pequena árvore é um belo exemplar da sua espécie (- espaço para o nome em latim que nunca vou saber -). Também eu sou outro, vejo as coisas mais de cima, como ela. Como ela vê uma cidade diferente a cada centímetro que cresce, também eu vejo um mundo diferente sem que cresça mais. A árvore e eu fomos crescendo como pudemos.