quinta-feira, dezembro 23, 2010

Mão Morta

Avistei uma mão pela porta entreaberta, no chão. Mexiam-se os dedos. Dou mais um passo encantado por uma estranha serenidade e absorvo, incauto, uma imagem horrorosa. Uma mão separada de um corpo dilacerado, mas os dedos mexiam-se. Recuo e fico a decidir se quero voltar a observar o macabro cenário. Continuava incrivelmente sereno, apesar da experiência aterradora que vivia. Havia pouca claridade, as imagens formava-se turvas, como que desfocadas, não distinguia sons dignos de nota ou, mais estranho ainda, sentia qualquer cheiro. Foi com uma leviandade assinalável que voltei à porta entreaberta e pude demorar-me a observar o dantesco panorama.
Uma parca claridade entrava pela grossa porta de madeira, projectando no chão uma linha oblíqua ao compartimento, uma fronteira entre o visível e a obscuridade total. Adiei a observação do corpo que sabia ali jazer e percorri a restante divisão. O chão era de madeira enegrecida, diria podre, em ripas largas muito gastas, das quais se desprendiam lascas afiadas. O ambiente ia ficando cada vez mais pesado, como se a luz se transformasse a cada absorção, a cada novo elemento que ainda assim ia distinguindo. Tendia para um rubor muito escuro, passando primeiro por uns alaranjados, sépias e outras tonalidades impossíveis de catalogar. Seriam os meus olhos? Seria esta uma estranha reacção do pânico, da estupefacção, da incredibilidade, no mínimo, que devia estar a sentir?
No centro, uma cadeira também de madeira, num estilo rústico, tosco, com braços curvos nos quais estavam pendurados restos de cordas velhas. Adivinhava-se o propósito que tinham servido. Enquanto olhava a cadeira, de soslaio conseguia distinguir a mão, que continuava a mexer-se animada por forças inexplicáveis. Quando finalmente a fitei em exclusivo, pude perceber que as palpitações intra-cutâneas eram motivadas por larvas que saíam e entravam cegas, por uma chaga aberta entre o polegar e o indicador. Eram larvas enormes, de proporções extra-mundanas, locomoviam-se de forma rápida e mecânica. Continuei estupidamente sereno. Esperava sentir um cheiro nauseabundo, fétido. A putrefacção era evidente, uma gosma esverdeada surgia aqui e ali, empoçada pelo chão. No entanto, continuava sem sentir cheiro algum, continuava sem nada escutar.
Tentei observar o corpo desfeito, envolto em farrapos que se confundiam com a própria epiderme, mas estava posicionado num plano onde a escassa luminosidade mal chegava. Por mais que tentasse focá-lo, a ambiência era cada vez menos clara. Todo o compartimento estava agora envolto numa vermelhidão quase negra. Confuso, voltei à mão e… Já não estava lá! Apenas gordas larvas, maiores ainda, agora quase imóveis. De todo o quadro, agora só conseguia distinguir lustrosas larvas brancas, estiradas no pavimento de madeira húmido, tão gordas que parecia que podiam rebentar a qualquer momento.
Subitamente um som. Primeiro parecia longínquo, mas rapidamente tomou conta de todo o cenário, varrendo-o abruptamente. Afastei o cobertor, estiquei a mão e alcancei o telemóvel. Desliguei o alarme.
Já no banho voltei ao sonho mórbido que o meu subconsciente se escusou a filtrar. “Tudo isto em sete minutos!?” A duração de um rigoroso snooze que programara na véspera.

segunda-feira, dezembro 20, 2010

Cinzentos de céu


Cinzentos de céu
Em mim só cinzentos, muitos
Diferentes mas feios, todos
Cinzentos esbranquiçados, sujos
Feios, sem nada senão ausência
E despido de vestido turvo
Sem nada senão tremores
Do frio do cinzento do…
Ah (cortante, sonoro)
Quem me dera a cor?!
Ausência da ausência
A cor
Pulsa em mim
Sem entender porquê
Ânsia contínua
Tremores do frio, do…
Cinzento em mim!
Não (suspirado entre dentes)
Afinal:
Ama-se o cinzento em mim
Cinzentos de céu
Diferentes mas feios, todos
Brancos acinzentados
Pretos aclarados, sujos
Feios, sem nada senão ausência

segunda-feira, novembro 15, 2010

Não abri os olhos


Entraste no quarto a invadir o silêncio. Conseguia perceber que te movias, sabia exactamente onde estavas. Não abri os olhos. A minha respiração a mesma, como se ainda sonhasse tranquilamente. Na face um sorriso estúpido, as bochechas espalmadas na almofada, o cabelo com jeitos incorrigíveis e o mau hálito matinal, tudo boas razões para continuar a fingir que dormia. O cheiro que invadiu o quarto ao mesmo tempo que tu, denunciava um banho tomado e que possivelmente te passeavas nua, com o cabelo molhado, enquanto escolhias a roupa interior. Sentia uma frescura no ar que deslocavas e percebia exactamente quando te encontravas no meu campo de visão. Não abri os olhos. Ainda assim continuei a fingir um sono profundo, alheio a um espectáculo que, talvez por masoquismo, me privava de assistir. Não abri os olhos.
Apesar de ainda na cama, sentia-me fresco, vigoroso, capaz de num salto me levantar e mostrar-me fisicamente capaz, forte. Teria apenas de accionar o mecanismo, o meu cérebro processar a informação e num ápice: Ops! Não abri os olhos. Continuei imóvel, espalmado sobre e entre os lençóis, imiscuído no colchão, quase fundido com ambos. Saíste.
Continuei acordado. Não abri os olhos.

quinta-feira, outubro 28, 2010

Origem: Portugal.


“Levo destas que são nossas.”E agarro no saquinho já preparado, com um kilo certo. São pequeninas mas parecem-me boas, rijinhas. Na fila para a caixa, vou decidindo que pastilhas adicionar à lista de compras. Sim, porque é quase impossível não engrossar a conta com um ou dois pacotes de pastilhas. Parece que se precipitam para dentro do cesto, ou para cima do tapete rolante: ”Jeronimoooo”!
Atento então nas maçãs dentro do cesto, mesmo ao lado do pack de mini Sagres (escolha essa indubitável). Porque decidi escolhê-las? Porque funcionou tão bem comigo o apelo à compra do que é português? As do lado eram bem maiores e mais brilhantes. O preço não sei, nem destas. “Quanto custaram mesmo? Epah, não, parece-me razoável..” Mas também já não fui ver quanto custavam as peruanas, as espanholas ou as francesas. Mesmo que fossem um pouco mais baratas traria sempre as nossas. Porquê?
Fui formulando teorias enquanto atirava para o cesto as pastilhas com sabor a melancia-ao-pôr-do-sol....
Deve ser da crise. A crise tem explicado 90% dos nossos dilemas ultimamente, era mais um para o saco (ou cesto, neste caso). Como as coisas estão mal por cá e os economistas da segunda-feira à noite dizem que temos que fomentar a produção nacional… Talvez inconscientemente o banho de crise me tenha levado a esse arbítrio. Hmmm, não! Só por isso não…
Talvez tenham sido resquícios de patriotismo. Desde o tempo em que selecção portuguesa jogava bem e púnhamos bandeiras à janela ou cantávamos o hino a chorar: “Heróis do mar…” Evocávamos conquistas dos egrégios avós, a lutar contra tudo, por cima de tudo, contra os canhões na terra e no mar… Eh lá, fui longe demais. Às vezes tenho que pôr travão… Não, também não foi isso. Ou não foi só isso…
Há umas publicidades tipo: “comprar o que é nosso” e “o que é nacional é bom” e outras que tais. Também me podem ter influenciado. Tipo surgir um mecanismo qualquer no meu inconsciente sempre que me deparo com uma possibilidade de escolha destas, despoletado por uma espécie de hipnotismo gráfico, subliminar e que o meu consciente não filtra, influenciando-me subtilmente na escolha. Hã? Epah, tenho de parar com isto…
Espera, há a questão da confiança, por exemplo: as nossas maçãs devem ter menos curas maléficas e conservantes injectáveis. Cá não usamos dessas coisas, pois não?! Devem ter vindo de uma quintinha cuja produção foi pouco mais do que aqueles 10 sacos de 1 kilo e usaram sempre fertilizantes naturais como a bosta de vaca e de cavalo e esterco de porco e de galinha e as lagartas eram afastadas pelos tratadores de forma delicada e as moscas comiam os insectos maus e as minhocas ajudavam na combustão e… Ok, já chega!
Acho que foi por acaso! E por causa das merdas, hoje não levo pastilhas…

sexta-feira, setembro 17, 2010

Gatos no ninho e uma colher de prata

Saio sem me ver ao espelho, duas voltas ao trinco, toque no botão de chamada. Por cima “Otis”. A cabine abre-se e apareço-me pela primeira vez hoje. “Esta barba já não é nada” penso enquanto vou reparando no pó que os meus ténis carregam. Lá em baixo o mundo, a ponte, o sol (ou a chuva), mas sol. Os dois piscas e posso abrir a porta. Óculos de sol. Depressa antes que me transforme em pó. O iogurte que trazia na mão em cima do banco, o computador também. O caminho faz-se entre golos e vermelhos de semáforo, no meio do rebanho urbano, do fluído de chapas coloridas. O som do rádio, regulo-o vezes sem conta, parece que nunca debita o decibel certo. Agora está alto, agora está baixo. É o trânsito? É. Então interessa-me. Não se passa nada sem ser o habitual, diz o aborrecido radialista. Tem razão. O habitual é o que se vai passando sempre, todos os dias… Perco-me em mais um ou dois pensamentos daqueles possíveis vinte minutos depois de acordar. Dada a fraca disponibilidade cerebral entro absorto no estaleiro, olhar no infinito. Distingo o porteiro desfocado a levantar-me a mão, levanto a minha mecanicamente em resposta à matinal saudação. Já cá estou, acordo. Computador no ombro, contentor, calçar botas. Lá fora o mundo, o meu mundo. Aquele a quem mais tempo dedico, a obra. Vou ver o que se passa, quem cá está, quem não está e devia ter vindo, depois e-mails, relatórios, mapas, controlos, planeamentos, obra. Que horas são? 19:30? Vou-me embora pah… Descalçar botas, sacudir as calças, computador no ombro. O porteiro já é outro. “Té manhã.” Semáforos e no rádio aquele programa. Às vezes fico na conversa deles, outras vezes mudo para onde passam música. Hoje vou a casa, à minha. Ponte, estrada, camiões de tomate, milhos e arrozes, vale e mais vale, ponte e Ponte. Saio do carro a respirar fundo. Computador no ombro, subir escadas. Já cheira a comida, será do vizinho? O que é que disse que queria para jantar. Ah, é isso! Hmm, a minha boca um oásis. Abro a porta, cheira bem, e não é a comida, és tu. A minha fome outra de repente e eu todo um oásis. Hmm… Depois do jantar a loiça, um pouco de sofá e a cama, a nossa. O beijo de boa noite cerra o dia. Hoje vou dormir bem, penso enquanto me viro de barriga para baixo.

terça-feira, maio 04, 2010

Fotos jantar do dia U

Passados quase dois meses, lá arranjei um tempinho para postar aqui mais umas fotos gentilmente enviadas pelo Rodney.


A bela da mini...


Companheiros, amigos, palhaços...



Garganêros

Malta do hip hop...

E pronto, a ver se pró ano há mais. Haja saúde! Ultras!

sexta-feira, março 26, 2010

Jantar do dia U


Gostaria de ter mais fotografias desta efeméride fabulosa, da qual só consigo aproveitar esta aqui em cima. Como tal, solicito que me enviem por e-mail as que tiverem para que possamos ilustrar a festa.

Sobre o jantar, queria só registar que foi batido o recorde de presenças com 16 Ultras (acho eu...). De resto, não há palavras que cheguem para descrever, vou deixar só algumas: companheirismo, Zé do caçador Príncipe, entusiasmo, gamba, alegria, percebe, inspiração, Sagres, exultação, sapateira, gáudio, ginja, parvoeira, João dos Calos, amizade, devoção, Espaço, tontaria, Primo Xico, loucura, Koppus, bebedeira, cama. Foram só algumas de enxurrada… Serão certamente infinitas, portanto quem fizer questão, aceitam-se sugestões.

U?!

quinta-feira, março 11, 2010

Onze do três

Hoje é dia 11/03, é dia U.
Parabéns a nós por mais este aniversário!
Apelo à revisita do post sobre o jantar do ano passado:
Foi fantástico. Quem não se lembra da passagem pelo João dos Calos ou a mini no Zé do Caçador... "Tenho 53 anos, mas mando saltos pareço um macaco..." Enfim, há que seguir em frente. Sei que há movimentos no sentido da realização do jantar no dia 19/3, portanto aproveito este veículo para lançar o desafio a quem se sinta U para comparecer. Será, como de costume, no sítio do costume...
Ultras!?

quinta-feira, fevereiro 18, 2010

Eu, só pensamos em nós…




Eu, deixa-me contar agora a minha história, a minha. Sim, já ouvi a tua, sim, registei aqui neste papelinho amarelo que colei com cuspo no móvel empoeirado da minha mente. Agora ouve lá, porque eu... Eu tenho que te dizer que a mim é que me aconteceu tal coisa assim-assim. Registaste? Ah, colaste com cuspo na memória disponível, a pouca disponível para mim. Sim, compreendo, como compreendo... Deixa estar, eu vou poder sempre contar-te outra vez o que me aconteceu, sim, o que aconteceu a este Eu, a este que vês. O quê? Achas que já ouviste isto que digo antes? Sim, é normal... Espera lá, se calhar conto outra vez, podes já ter esquecido aquele pormenor que te faz soltar sempre aquela gargalhada tão espontânea como a minha expressão de surpresa ao ouvir a tua história. Já percebi, não queres ouvir, não te interessa, não me digas! Interessa-te tanto como a tua história a mim? Isso é pouco ou nada... Mas eu, a mim é que. Porque fiz e aconteci e depois voltei a acontecer e fazer, eu. Desculpa, tinha que contar, registaste? Não? Tudo bem, pede mais uma cerveja e vamos ser felizes enquanto nos aborrecemos. Competimos a ver quem aborrece mais quem. Eu, a mim e tu interrompes e dizes, mas não queiras saber, eu... E ficamos assim a ouvir-nos só a nós mesmos, mas com público, o publico és tu e sou eu, a pensar em mim e a falar de mim e tu a pensares e falares em ti. Se o bar não fechasse e as cervejas não deixassem de aparecer à nossa frente a determinada altura, por quanto tempo mais poderíamos estar neste jogo de "ouve lá agora o que eu digo"? Podia ser preocupante, acabavam-se os post-its e a saliva para os colar, o shuffle das histórias podia falhar e a repetição tomava conta de mim e de ti e aborrecer-nos-íamos tanto, mas tanto, que ficávamos irremediavelmente surdos, falaríamos ao mesmo tempo e empolgadamente íamos aumentando o tom de voz de tal forma que a perderíamos, a voz. Mas ainda assim continuávamos a mexer os lábios, porque não ouvíamos nem percebíamos que estávamos sem voz e tínhamos mesmo que contar só mais aquela história sobre Eu. Não! Pára! O bar vai fechar, estamos salvos. Até amanhã, amanhã não me vou lembrar do que me contaste, que pena... Espera, encontramo-nos amanhã e contas-me outra vez, ok? É que eu, a mim também me aconteceu sei lá o quê e amanhã conto-te tudo. Vou para casa e penso nele e nas histórias que ele contou, mas as minhas, eu, eu é que, eu, eu, eu...
18/04/2006