sexta-feira, setembro 17, 2010

Gatos no ninho e uma colher de prata

Saio sem me ver ao espelho, duas voltas ao trinco, toque no botão de chamada. Por cima “Otis”. A cabine abre-se e apareço-me pela primeira vez hoje. “Esta barba já não é nada” penso enquanto vou reparando no pó que os meus ténis carregam. Lá em baixo o mundo, a ponte, o sol (ou a chuva), mas sol. Os dois piscas e posso abrir a porta. Óculos de sol. Depressa antes que me transforme em pó. O iogurte que trazia na mão em cima do banco, o computador também. O caminho faz-se entre golos e vermelhos de semáforo, no meio do rebanho urbano, do fluído de chapas coloridas. O som do rádio, regulo-o vezes sem conta, parece que nunca debita o decibel certo. Agora está alto, agora está baixo. É o trânsito? É. Então interessa-me. Não se passa nada sem ser o habitual, diz o aborrecido radialista. Tem razão. O habitual é o que se vai passando sempre, todos os dias… Perco-me em mais um ou dois pensamentos daqueles possíveis vinte minutos depois de acordar. Dada a fraca disponibilidade cerebral entro absorto no estaleiro, olhar no infinito. Distingo o porteiro desfocado a levantar-me a mão, levanto a minha mecanicamente em resposta à matinal saudação. Já cá estou, acordo. Computador no ombro, contentor, calçar botas. Lá fora o mundo, o meu mundo. Aquele a quem mais tempo dedico, a obra. Vou ver o que se passa, quem cá está, quem não está e devia ter vindo, depois e-mails, relatórios, mapas, controlos, planeamentos, obra. Que horas são? 19:30? Vou-me embora pah… Descalçar botas, sacudir as calças, computador no ombro. O porteiro já é outro. “Té manhã.” Semáforos e no rádio aquele programa. Às vezes fico na conversa deles, outras vezes mudo para onde passam música. Hoje vou a casa, à minha. Ponte, estrada, camiões de tomate, milhos e arrozes, vale e mais vale, ponte e Ponte. Saio do carro a respirar fundo. Computador no ombro, subir escadas. Já cheira a comida, será do vizinho? O que é que disse que queria para jantar. Ah, é isso! Hmm, a minha boca um oásis. Abro a porta, cheira bem, e não é a comida, és tu. A minha fome outra de repente e eu todo um oásis. Hmm… Depois do jantar a loiça, um pouco de sofá e a cama, a nossa. O beijo de boa noite cerra o dia. Hoje vou dormir bem, penso enquanto me viro de barriga para baixo.