sexta-feira, março 16, 2012

Não abri os olhos (I, II, III, IV, V)

I


Entraste no quarto a invadir o silêncio. Conseguia perceber que te movias, sabia exactamente onde estavas. Não abri os olhos. A minha respiração a mesma, como se ainda sonhasse tranquilamente. Na face um sorriso estúpido, as bochechas espalmadas na almofada, o cabelo com jeitos incorrigíveis e o mau hálito matinal, tudo boas razões para continuar a fingir que dormia. O cheiro que invadiu o quarto ao mesmo tempo que tu, denunciava um banho tomado e que possivelmente te passeavas nua, com o cabelo molhado, enquanto escolhias a roupa interior. Sentia uma frescura no ar que deslocavas e percebia exactamente quando te encontravas no meu campo de visão. Não abri os olhos. Ainda assim continuei a fingir um sono profundo, alheio a um espectáculo que, talvez por masoquismo, me privava de assistir. Não abri os olhos.


Apesar de ainda na cama, sentia-me fresco, vigoroso, capaz de num salto me levantar e mostrar-me fisicamente capaz, forte. Teria apenas de accionar o mecanismo, o meu cérebro processar a informação e num ápice: Ops! Não abri os olhos. Continuei imóvel, espalmado sobre e entre os lençóis, imiscuído no colchão, quase fundido com ambos. Saíste.


II


Continuei acordado. Não abri os olhos. Ouvi a porta fechar-se e aí sim, resolvi levantar-me. Contudo, o som longínquo da gaita de um Amola Tesouras impediu-me de saltar da cama, irrompeu como que a travar a ordem que já havia dado às pernas. Fiquei a ouvi-lo. Não abri os olhos. Imaginava o esvoaçar do cortinado, pois sentia a brisa fresca a invadir o quarto e a arrepiar-me, ao mesmo tempo que a melodia inconfundível me inebriava e transportava para mundos imaginários. Acontece-me. A rara melodia da gaita do Amola Tesouros parece que não é de cá. Aliás, o próprio Amola Tesouras encerra uma origem enigmática. Imagino-o numa manhã fria a sair de casa, uma casa baixinha, no campo, a porta envolta numa videira e um banco ao lado. A luz do dia ainda pouca, pega na bicicleta, gaita ao pescoço, presa por uma fita de cabedal, e vem por entre o nevoeiro e as luzes ainda acesas dos candeeiros velhos até à vila, sempre a descer pela estrada de pedras, porque mora num monte. Chega com a luz do dia, ninguém sabe o seu nome, não deve ter família. Toca pela primeira vez a gaita no silêncio da vila, emprestando-lhe uma banda sonora perfeita. Já sem o nevoeiro, sobre a calçada escura vai por aí fora. Ruas, ruelas e ninguém com uma tesoura para amolar. Nunca vi um Amola Tesouras a amolar uma tesoura. Não sei se já vi um Amola Tesouras. O som da gaita sim: “Tiruriruriiii… Tiruriruri…” Ouve-se de quando em vez, de vez em quando, não sei quando. Nunca se está à espera quando se ouve aquele som. Ninguém deve saber quando vem. O som mais próximo, mais nítido, não oiço mais nada a não ser a gaita do Amola Tesouras, aqueles tubos paralelos, do maior para o mais pequeno, do grave para o agudo, do agudo para o grave. Não abri os olhos.


Será que dormitei? Ainda ouvia o som, ao fundo, quase que o vi a ser levado pelo vento, em tons amarelo-torrado, o som. Não abri os olhos. Estava acordado, devia levantar-me. Que horas seriam? “Que dia é hoje?” Perguntei-me sem querer saber a resposta. O quarto menos fresco, o sol já devia projectar-se no pavimento a imitar madeira. Continuava deitado, o corpo imóvel, esparramado, mas a mente em devaneios, a absorver. Não abri os olhos.


“Chega! Vou levantar-me”. Mas primeiro abro os olhos. O que verei quando os abrir? Lençóis, pedaço de cama, tapete, parede branca, chão… Hei! Hum! Que cheiro é este? Peixe a assar, há um peixe numa grelha a libertar aromas que enchem bocas de água. Lambi o lábio superior, parece que assim passei a sentir melhor o cheiro, ainda suave, que agora entrava pelo quarto. Não abri os olhos. Vi o peixe na grelha, escalado. Pedras de sal em cima. Depois vi-o no barco, acabado de pescar, a saltar ainda, reflectindo luz reflectida pela lua das cinco da manhã. A luva do pescador, de borracha, a envolvê-lo, a atirá-lo para junto dos seus pares, companheiros de cardume, agora agonizando, aos saltos, encandeados pela luz do barco, amarela, sem perceberem nada. Vi-o momentos antes da rede o içar para um mundo que não o seu, no indigo daquele mar, quase estuário ainda. Vi-o, com a voracidade que só ele parecia ter, a engolir de uma vez um mais pequeno, distraído, assustado com o aproximar de um vulto enorme à superfície. O vislumbre da ponta do cigarro do pescador, assomado na proa, não o demoveu de perpetrar aquela que seria a sua última caçada. Não abri os olhos.


Percebi que tinha fome, devia ir comer. Levantar-me e ir comer era o que devia fazer. Dizia-me o corpo, algo cansado de lutar contra mim, que continuava ali, espalhado pela cama. O quarto quente já, o dia a meio e eu: os olhos fechados. Não abri os olhos.


III


E se, por via da total inactividade e consequente poupança de energia, conseguisse ignorar completamente a fome? Não abri os olhos. Concentrei-me no estômago, que existia empurrado contra o colchão, entre eles o lençol, a pele e demais tecidos. Imaginei-o vazio e eu lá dentro, pequeno. Estava escuro. Equilibrava-me na parede húmida, cavernosa, irregular, vermelha viva, viva. A superfície escorregadia e lá no fundo uma pequena poça de líquido esverdeado a emanar vapores ácidos. O cheiro: impossível. A poça cada vez mais pequena, como o fundo de uma banheira entupida cujo ralo deixa passar a água muito devagar. Formava-se uma bolha de ar no centro e, quando rebentava, sumia-se mais um pouco do líquido pelo orifício. Nesse instante um barulho enorme e salpicos pelas paredes. Não abri os olhos. Percebi os ruídos que o meu estômago produzia, mas decidi ignorá-los.


O quarto quente, a fome, a cama, eu e o quarto. Levitei e saí do meu corpo, não abri os olhos. Abandonei-me, subi até ao tecto, sentei-me no candeeiro e fiquei a observar-me. Os olhos fechados, costas nuas, lençol pelas pernas, a cara esborrachada contra a almofada. “O que fazes aí?” – perguntei. “Daqui vejo crianças lá fora, uma bola a saltar à frente delas e gritos. Jogam à bola.” Sim, de facto distinguia os sons da futebolada que acontecia não muito longe da minha janela. De repente era eu a bola. Não abri os olhos.


IV


Era pontapeado de todas as formas possíveis. O jogo era uma anarquia completa, as crianças disputavam-me como se do septo mais sagrado se tratasse. Levantava voo e sem cair no chão era de novo pontapeado. Apesar de tudo eram suaves, os impactos de que ia sendo alvo, mesmo quando me despenhava no chão e saltitava e rodopiava à espera de outro pontapé, não sentia senão suaves embates. Parece que tudo se passava a uma velocidade muito menor do que a real. As crianças tentavam jogar o mais rapidamente possível, como tem de ser, mas a minha percepção era de que tudo acontecia lentamente. A distância a percorrer entre o pontapé vitorioso e a baliza improvisada na porta da garagem demorava tempo suficiente para ir apreciando a paisagem. As obras, a roupa estendida, a vizinha à janela a sacudir a toalha do almoço, o vizinho a passear o cão irritante. Não abri os olhos.


Do candeeiro, via-me inactivo, quase que conseguia ouvir o meu cérebro a ordenar-me que me levantasse. Os barulhos do estômago: desistiram de mim. Mergulhei-me. Não abri os olhos. Continuei a respirar para cima da almofada húmida de baba. Sentia o cabelo despenteado, a barba espetava-se no lençol. O quarto cada vez mais quente, a fome, a cama e eu e o quarto. Apurei todos os sentidos na tentativa de absorver algo que me levasse noutro devaneio. Divertia-me o exercício. Saia de mim, mas ali continuava. Não abri os olhos.


V


Imaginei o cortinado a esvoaçar, quase que o senti a tocar-me na perna quando uma brisa, já mais fresca, entrou suavemente pelo quarto. Não abri os olhos. Arrepiei-me. Concentrei-me no arrepio. O arrepio tem qualquer coisa de metafísico, é difícil explicar, com certeza há estudos sobre o fenómeno, teorias, fábulas ou crenças, mas aquele tremor, o eriçar dos pelos dos braços, o friozinho a percorrer o corpo são sempre sensações que nos abstraem do resto. Sente-se um arrepio e não se pode ser indiferente a ele, é isto. E é bom, quase sempre. E depois podíamos debruçar-nos sobre as causas, que podem ser as mais variadas e, mais interessante, podem ter origem puramente física – arrepio de frio – ou simplesmente mental – ouvir aquela música, naquele momento. Arrepiando caminho (sei que foi fácil, mas tinha de ser…): já disse que estava na cama, imóvel, em viagens mentais, a lutar contra o cérebro que queria que me levantasse e fosse comer, enfim, estamos nisto e vem o arrepio. Eriçam-se-me os pelos dos braços e vão pelas fibras dos lenços, colchão e são raízes de árvore à procura de água em solo estéril, seco. Sou uma árvore do deserto, uma daquelas famosas Joshua Tree, com uns mil anos de vida, a ver passar coiotes, cascavéis e à noite as borboletas, o céu com estrelas diferentes, já as devo ter contado todas. Um vez vi um homem e, no minuto seguinte, passavam comboios mesmo perto de mim. Já não passam, a linha foi engolida por areia e ervas sempre secas. Um dia destes, uma dessas ventanias vai-me arrancar e cairei e a areia engole-me também, enquanto isso vou dormindo sob o sol abrasador à espera da estação húmida. Aí, as minhas raízes absorverão até a menor das gotículas de água e floresço durante uns dias. Estou dormente, à espera da estação húmida, para florescer. Não abri os olhos.


O sol já deve ir no seu sentido descendente, o quarto arrefece e eu em arrepios de frio, mas imóvel, sem abrir os olhos. Fome, frio, o corpo dormente, a experimentar a imobilidade. Comigo, com os desvarios, em testes, em desafios, sem objectivo, num vazio preenchido apenas por sensações entre o palpável e o nem por isso. Oiço a televisão de uma casa qualquer perto e tento não lhe prestar atenção, não vá reconhecer um qualquer genérico que me situe temporalmente. Não quero saber as horas. Não abri os olhos. De quando em vez, um carro passa na rua e agora uma sirene ao longe, na estrada nacional. Em estridentes variações de frequência sonora e flashes azuis. Oiço-a só a ela agora, ensurdecedora, os flashes azuis passam-me mesmo em frente aos olhos e quase me cegam. Não os abri, os olhos. Sou a garrafa de soro pendurada, aos solavancos, ao sabor das curvas e lombas da estrada. Lá em baixo, numa imagem meio turva, distingo alguém em volta da marquesa, movimentos rápidos, urgentes. Uma travagem brusca e precipito-me no chão da ambulância. Rebolo sem parar e quase perco o líquido, para um lado, para o outro, não oiço nem vejo mais nada, só luzes rápidas e difusas. Nisto, uma mão forte levantou-me e apertou-me, pude ver-lhe os olhos a inspeccionarem-me. ”Safou-se por pouco.” Não abri os olhos.


Já deve ser quase noite. A porta a abrir-se, oiço-a e estremeço, mas só por dentro. Não abri os olhos. Entras no quarto a invadir o silêncio, trazes calor contigo ao quarto frio e adivinho-te a aproximares-te da cama, debruças-te sobre mim, encostas quase o teu rosto ao meu, os cabelos sinto-os nas minhas costas frias, o arrepio. E dizes a sussurrar: “Abre os olhos!”.