domingo, abril 03, 2011

A árvore que cresceu comigo


Na esquina das casas de madeira, do bairro pré-fabricado que substituiu as barracas, havia uma pequena árvore. A época de que falo parece agora longínqua, separam-nos do presente, no meu caso cerca de um metro, no caso dela uns dez ou doze. O espaço e o tempo confundem-se um pouco quando ali regresso, seja fisicamente, nos confusos sonhos em que sou pequeno, ou numa reconstituição mental de um golo marcado, por entre estendais de roupa a cheirar a sabão macaco e cardos afiados.

As brincadeiras eram sazonais, sem que um plano anual fosse traçado à partida, o interesse pelo berlinde aparecia quando o desinteresse pelo pião se acentuava. E assim aconteciam, independentemente da modalidade, as tardes inteiras de dedicação à mesma. O aperfeiçoamento das técnicas era notório, no final de cada dia éramos mais experientes: a pontaria melhorava, no caso da utilização da fisga, por exemplo.

O desenho da pista para as bicicletas, perto do monte abandonado, era orgânico e mutável e os montinhos de terra que permitiam o descolar das rodas do chão, eram tanto mais altos quanto mais tempo nos perdíamos por ali e, consequentemente, a técnica se ia apurando. Claro que uma queda mais aparatosa e/ou o comprometimento da bicicleta – que claramente não era desenhada para o efeito - podia significar um abrupto término da época. Rapidamente a ocupação era substituída por uma jogatana de bola. Sim, o futebol, latejava sempre naqueles terrenos e a decisão de iniciar uma partida podia partir a qualquer instante, sem complicações, sem horários marcados, necessidade de adequação do vestuário ou calçado. O impedimento maior era muitas vezes a falta da personagem principal. A bola. Muitas vezes fui o proprietário do esférico e fazia depender de mim a felicidade de uns quantos meus pares. Isso deixava-me contente! Quando tinha uma bola nova ansiava pô-la a rolar por ali. Nunca duravam muito tempo, a fraca qualidade do material também ajudava. Mas era sobretudo devido a uma utilização agressiva, em todos os cenários possíveis, que rapidamente se começavam a descolar peças geométricas de couro sintético. Depressa se tornavam todas cinzentas e daí até se começar a vislumbrar a câmara-de-ar de borracha por entre os pontos rebentados, eram dois ou três pontapés mais inflamados.

Eram tempos de liberdade total. É difícil hoje perceber como se podia ser tão imensamente feliz com aquela realidade apenas, sem planos maiores do que o instante seguinte. A verdade é que agora não se atingem, por mais que estejamos num bom período existencial (que tarólogo é que me possuiu o espírito?), momentos de descompressão, despreocupação, enfim, leveza, como os que ali experienciava.

“Anda lanchar filho” A minha avó à porta. Sem luto, desempenada, com força, a sorrir às vezes. Já não sorri há tanto tempo. Duvido que mais alguma vez o faça. A minha avó um pilar, a parede mestra. Depois um sismo, danos irreparáveis, anos a aguentar o que não podia e a cedência, o colapso. Antes avó e mãe e avô e pai, agora toda a tristeza do mundo nela. Um abismo feito gente, um farrapo, nas suas palavras. Como tudo muda. Merecia em vez de um parágrafo, um livro, mas só me saem estes arranques…É difícil.

Da porta da casa da minha avó via-se apenas a ponta da pequena árvore, por detrás do muro. Hoje já não há muro, as casas pré-fabricadas deram lugar a moradias e a pequena árvore é um belo exemplar da sua espécie (- espaço para o nome em latim que nunca vou saber -). Também eu sou outro, vejo as coisas mais de cima, como ela. Como ela vê uma cidade diferente a cada centímetro que cresce, também eu vejo um mundo diferente sem que cresça mais. A árvore e eu fomos crescendo como pudemos.