quinta-feira, fevereiro 18, 2010

Eu, só pensamos em nós…




Eu, deixa-me contar agora a minha história, a minha. Sim, já ouvi a tua, sim, registei aqui neste papelinho amarelo que colei com cuspo no móvel empoeirado da minha mente. Agora ouve lá, porque eu... Eu tenho que te dizer que a mim é que me aconteceu tal coisa assim-assim. Registaste? Ah, colaste com cuspo na memória disponível, a pouca disponível para mim. Sim, compreendo, como compreendo... Deixa estar, eu vou poder sempre contar-te outra vez o que me aconteceu, sim, o que aconteceu a este Eu, a este que vês. O quê? Achas que já ouviste isto que digo antes? Sim, é normal... Espera lá, se calhar conto outra vez, podes já ter esquecido aquele pormenor que te faz soltar sempre aquela gargalhada tão espontânea como a minha expressão de surpresa ao ouvir a tua história. Já percebi, não queres ouvir, não te interessa, não me digas! Interessa-te tanto como a tua história a mim? Isso é pouco ou nada... Mas eu, a mim é que. Porque fiz e aconteci e depois voltei a acontecer e fazer, eu. Desculpa, tinha que contar, registaste? Não? Tudo bem, pede mais uma cerveja e vamos ser felizes enquanto nos aborrecemos. Competimos a ver quem aborrece mais quem. Eu, a mim e tu interrompes e dizes, mas não queiras saber, eu... E ficamos assim a ouvir-nos só a nós mesmos, mas com público, o publico és tu e sou eu, a pensar em mim e a falar de mim e tu a pensares e falares em ti. Se o bar não fechasse e as cervejas não deixassem de aparecer à nossa frente a determinada altura, por quanto tempo mais poderíamos estar neste jogo de "ouve lá agora o que eu digo"? Podia ser preocupante, acabavam-se os post-its e a saliva para os colar, o shuffle das histórias podia falhar e a repetição tomava conta de mim e de ti e aborrecer-nos-íamos tanto, mas tanto, que ficávamos irremediavelmente surdos, falaríamos ao mesmo tempo e empolgadamente íamos aumentando o tom de voz de tal forma que a perderíamos, a voz. Mas ainda assim continuávamos a mexer os lábios, porque não ouvíamos nem percebíamos que estávamos sem voz e tínhamos mesmo que contar só mais aquela história sobre Eu. Não! Pára! O bar vai fechar, estamos salvos. Até amanhã, amanhã não me vou lembrar do que me contaste, que pena... Espera, encontramo-nos amanhã e contas-me outra vez, ok? É que eu, a mim também me aconteceu sei lá o quê e amanhã conto-te tudo. Vou para casa e penso nele e nas histórias que ele contou, mas as minhas, eu, eu é que, eu, eu, eu...
18/04/2006