terça-feira, maio 29, 2007

Os tempos do helicóptero...


Outro dia reparei na felicidade de uma criança que, montada num daqueles divertimentos consumidores de moedas, ria à gargalhada fazendo girar o volante que segurava com toda a força. Sabem do que falo, há desde carros desportivos a póneis, de abelhas a dinossauros, aviões e helicópteros, insectos e elefantes…

Perguntei-me como era possível ser tão feliz em cima de uma máquina dessas. Não passam de uns solavancos mecânicos, ali no mesmo lugar. A máquina produz uns sons concordantes com o que ali está representado e algumas são interactivas, ou seja, a criança carrega nuns iluminados botões que emitem sons. Enfim, racionalmente parece ridículo tirar dali prazer.

Neste exercício depressa me transportei até à praia da Nazaré, há uns bons anos atrás, quando eu, o meu irmão e o meu primo nos esfolávamos por uma moeda que trocávamos por uma alucinante viagem num estúpido helicóptero. Faziamo-lo diariamente, como um ritual, já sabíamos que a seguir à sesta, no caminho para a praia, havia o helicóptero à porta do bazar onde se vendiam aquelas bugigangas que despoletam birras em putos mal-educados. A minha mãe ou a minha madrinha financiavam a coisa. O negócio era bom para todos: afinal de contas, apesar de acontecer com uma frequência diária, apenas uma moeda calava três gargantas protestantes. E ai íamos nós até às nuvens… Ou então éramos dominados pela discussão de quem controlava o joystick e não saímos do chão… O habitáculo estava dimensionado para duas crianças no máximo, mas nós conseguíamos caber os três lá dentro. Apertados, subíamos e descíamos o mais bruscamente possível e riamos muito… Depois a curta viagem que a moeda permitia acabava, mas não havia problema pois ainda havia uma tarde de praia pela frente…

Na praia jogávamos à bola, às três quedas e perguntávamos de minuto em minuto se já podíamos ir ao mar… É que a digestão de um bom almoço estava em curso e a fiscalização era rigorosa. No fantástico minuto, aliás segundo, em que a resposta era positiva, corríamos até à beira da água e das duas uma: ou o mar permitia que sem vigilância entrássemos, ou tínhamos que esperar pelo meu pai e ficávamos ali a rebolar-nos na rebentação das ondas. Enchíamos os calções com quantidades absurdas de areia… Mergulhávamos por baixo das ondas como o meu pai ensinava e tentávamos apanhá-las e surfá-las com o peito. O resultado de tanto exercício era uma fome tremenda. Aquela fome só acontecia na praia, não dá para explicar, mas era diferente. Aí, a minha mãe descascava pêras e ia distribuindo quartos por todos… Essas pêras da praia sabiam incrivelmente melhor do que quaisquer outras.

Uma vez, possuído por uma dessas fomes imensas, dei uma dentada tal numa sandes de presunto, que fiquei com um pedaço preso na garganta. Comecei a sufocar, fiquei de várias cores, até que o meu tio me pegou pelos pés e me pôs a ver o mundo ao contrário. Em pânico, meti a mão direita à boca e tirei com os dedos o enorme pedaço de presunto que me impedia de respirar. Foi um alivio, para mim e para todos… A partir dali, comecei a mastigar antes de engolir, independentemente da fome que tinha…

Á noite, passeávamos à beira mar. Já conhecia os desenhos daquela calçada de cor, tantas vezes me perdi a imaginar caminhos entre eles…

De férias não nos eram dadas ordens para ir para a cama e também não era preciso… Chegávamos exaustos ao fim do dia e dormíamos sempre muito bem, mesmo que o divã não fosse o mais confortável… Bem cedo, a minha avó acordava-nos e seguíamos os cinco: eu, o meu irmão, o meu primo, a minha avó e o meu avô. Íamos ao mercado! Cheguei a pensar que só na Nazaré é que havia mercado, pois só conhecia aquele. Comíamos a melhor massa frita do mundo e bebíamos uma meia de leite a escaldar. Passávamos pelas bancas do peixe e adorávamos ver o meu avô a regatear o preço das sardinhas, ou dos carapaus. A seguir, os legumes e a senhora a comprimir a couve fazendo-a passar na máquina à manivela, que a tornava em caldo verde. Depois, assistíamos à meticulosa tarefa que era a escolha de um melão. O meu avô e a minha avó pegavam nos melões e tomavam-lhes o peso, balançando a palma da mão. Vínhamos com os sacos para casa e já havia manobras de preparação para mais um dia de praia. Recolhiam-se as toalhas a cheirar a mar, vestiam-se os calções secos, ou ressequidos pelo sol, o chapéu era-nos enterrado na cabeça e ia-mos em romaria. Todos menos a minha avó, que ficava a fazer o almoço. A opção era dela…

Passava-se pelo quiosque… Jornais para os graúdos, banda desenhada para os miúdos. Cheguei a ler por dia um livro do patinhas, só para no outro dia me comprarem outro. O acordo era esse: “Quando leres esse, compro-te outro.”

A praia de manhã era fantástica, a areia estava fresca, havia menos gente e com sorte passava a mulher que vendia a bolacha americana. O pregão já tinha décadas, mas as bolachas eram sempre incrivelmente estaladiças e apetitosas. “Agora não que estragas o almoço…” - dizia a minha mãe. Mas contra as regras, a minha madrinha cedia e a bolacha era devorada num ápice e sem prejuízo para o almoço… A minha madrinha era fácil de convencer… Estava sempre pronta a comer um gelado e nós também.

Íamos almoçar o peixe que compráramos na praça e chegava a hora da sesta. Que chatice, não se compreendia porque é que os adultos não queriam ir para a praia às duas da tarde. Nem está assim tanto calor… Até tínhamos uma barraca alugada…

A sesta acabava e vinha o helicóptero outra vez…

A Nazaré tinha as mulheres com as sete saias. Mas o que mais impressionava não eram as sete saias, mas sim a linguagem descuidada que usavam orgulhosamente. Na Nazaré havia ainda o cheiro das pastelarias com os bolos frescos de manhã, o cinema de vez em quando, as mariscadas e a ida ao Sítio de ascensor. No Sítio, apesar de distraídos com as bugigangas à venda e com todo o movimento, quando nos aproximávamos do murete do precipício, havia uma sensação de respeito que nos dominava e com o cuidado exigido espreitávamos maravilhados. Parecia que chegávamos a outra dimensão, ver tão pequenina lá em baixo, a praia onde passávamos os dias. Tentávamos identificar a nossa barraca, mas era impossível.

Éramos felizes e éramos mais… Bons tempos, os do helicóptero….